segunda-feira, 25 de maio de 2009

Trânsito Caótico

Lembro-me do Zé, amigo dos tempos de colégio, que sempre finalizava suas frases com a sentença "É, Lucas... é o caos!". O Zé, músico do mais alto gabarito, aluno da Villa-Lobos, conseguia formular reflexões e articular os grandes temas com os grandes autores, tudo com muita organização e perspicácia. Rearrumar as informações absorvidas por um cotidiano tão acachapante é a maior missão que uma esponja-de-conhecimento como eu pode se propor a ter. Em dados momentos, tanta absorção faz com que o computador entre em pane, e... pife! É aí que nos falta inspiração, e as tarefas mais corriqueiras são realizadas sob a luz de um desnudo improviso. Pois então nós gaguejamos, falhamos na escolha léxica, perdemos o sentido das frases, aplicamos a concordância incorretamente e tornamos as nossas propostas bem mais descabidas. A excelência? Foi pras cucuias! Não há como sobreviver nos andares de cima por todo o tempo. Há de se ter tempo para dormir, saborear as guloseimas engordantes e até mesmo coçar o saco. Sem o sagrado intervalo para o ócio criativo - e para o ócio inútil também - não há como manter o raciocínio no padrão desejado. Nos últimos dias, e vocês perceberam isso, tenho passado por uma enorme crise de criatividade. Meu texto não flui. As coisas são feitas no tapa, e todo tapa dói. Escrever sem vontade dá uma enorme dor-de-cabeça, e a sensação de ter feito cooper por todo o calçadão da Avenida Atlântica. Cada dez linhas são dez quilômetros percorridos, tá bom pra vocês? O grande sentido de se passar por uma entressafra criativa destas é reaprender a ordenar os compromissos e os conteúdos absorvidos. Só assim, arrumando mecanicamente os livros na estante, poderemos encontrar uns bons minutos para descansar ou assistirmos despreocupados à novela das sete.

sábado, 9 de maio de 2009

Glacê

Vai na ponta do pé, avisa aos arenques que tu és feliz. Ouça o silêncio que sucede o quebrar das águas, o respingar dos corpos escamados que delas saltam para o habitat, o som estranho da fauna marinha. Entra no banho salgado e faz um agrado ao mar que te rodeia, faz-te ilha de raio curto, ponto primata na imensidão. És, muitas das vezes, a única viva alma perdida no infindo paraíso das incertezas e dos devaneios. Na ilha de mar salgado, és o porto seguro de minha humanidade, a porta aberta de uma voz sã e de duas mãos carinhosas. Mergulha um pouco, e sente gelar as costas e os cabelos. Refresca todos os poros e células, fazei respirar debaixo d'água cada centímetro aliviado de um corpo castigado por tanto se torturar. Não use o autoflagelo. Mergulhe e vá além, sirva de ilha em outros pontos do mar do mundo. Mareia, maruja, e espanta todas as ondas maiores do que as caudalosas. Sirva de mar calmo em meio à tormenta. Crie asas, plane sobre tudo, veja a pequenez de todos os outros que lá de cima são menores do que ti. Observe as copas das árvores, os telhados cor-de-telha, veja o quão as coisas são o que parecem ser. E muitas vezes o são. Sinta a brisa que só o vôo desacompanhado pode trazer. Vá até o infinito, navega pelos ares em busca do profundo que há quando tudo passa tão rápido quanto o vento vem. Voa mais rápido do que as nuvens que correm antes do temporal, deixe-as bem brancas e de frágil consistência. Não quero água pelos joelhos. Me salva do afogamento, me faz sorver meus próprios medos que, vistos lá de cima, são menores quanto todos os outros. Me arrebata o coração com o susto de notar que os amores vôam tal qual o tempo em que vivem, tempo em que o início se divide em mil partes, o meio é o fim e o fim... este está fora de nossos domínios. Faz de cada pedaço do início um recomeço. Reparte cada momento em um porta-retrato, parta comigo para qualquer lugar, viva comigo em qualquer outra parte, seja o encarte ou a primeira página o nosso destino. Corre pelas areias comigo, sente cada grão bater no rosto e arranhar levemente a pele delicada de quem precisa tomar um sol. Seja a sorte de meu destino em cada tempestade. Ria comigo dos camaleões, das aranhas e dos escorpiões. Beba o néctar do mais puro veneno. Seja a minha amiga de todos os risos e dos outros avisos, crítica mordaz dos erros meus e voz doce a palpitar sobre como fazer para consertá-los. Seja acendedor para meu fogo, veja esperta a fogueira que arde quando nada mais há do que a certeza de que a morte é sem porte para apagar esta chama. Seja minha ilha, minhas asas, minha brasa, meu oásis. Sim, seja água em meu deserto. Me faz viver pra sempre a mais doce fantasia de saber que, afinal, amar demais não tem porém. E, de todos elementos, é no mais simples que encontrei meu equilíbrio: no amor, disponível a todos que conseguem encontrar em mais alguém o que sempre quiseram para si próprios.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

A Cena Muda

Não pertence a este tempo o ardor das cenas mudas. Outrora, os grandes romances e desforras eram pontuados pelo sepulcral silêncio das bocas que se mexiam sem nada falar. Naquelas paragens, as vozes caladas pela primitiva tecnologia de registro cinematográfico eram simuladas pelas mentes de milhões e repercutidas por quem imaginava como seria o cinema falado. E o cinema falado foi o culpado da transformação. Tornamos som só aquilo o que ouvimos, desconsiderando as sonoridades que só as almas solenes conseguem captar. Compramos discos, e cada vez mais discos, de rotações e long play, exigimos que o som se integrasse em definitivo à imagem cinematográfica com a destituição do sistema Vitaphone e afirmamos que só é áudio o que toca em algum lugar. E as trilhas sonoras de nossas vidas, pontuadas por momentos de maior e menor intensidade - como a própria vida - e que coexistem em nossas memórias? Onde colocar as notas perdulárias dos toques no piano? E o pianista de cinema mudo que há em todos nós?A chegada do som ao imaginário coletivo trouxe o afastamento pelo aperto das pressões cotidianas do instante de mais puro lirismo, que é a contemplação dos gestuais virtuosos e das expressões de cadafalso, típicas de quando a cena era muda. As trilhas sonoras ao piano, as dores e festejos salpicados pela ausência de som e a severidade que só o silêncio traz aos prazeres hedonísticos são peças de museu. Trazer o som à imagem era como abrir a porta do microondas. Pegai-vos o prato pronto. Esquece-se até do principal som que sucede qualquer ato de prazer: o som-nenhum. Nos desapegamos dos momentos em que a singeleza não pede palavras, apenas pensamentos. Estes pensamentos, quando feitos com sensibilidade, trazem som a qualquer cena sem que precisemos escravizar os ouvidos.