sábado, 6 de dezembro de 2014

Desacordo

Não, eu não tenho fé que me ampare
Nem santo aqui, nem mesmo eu
Nem mesmo a prece que me desvale
E nem mesmo peço à sorte que me resvale

Hoje, não valho o caco, não valho a alma moída
Não peço, não passo, não lambo a ferida
Não clamo, no poço, não peço partida
Nem morrer eu quero mais

Hoje, sou o bater da casa de máquinas de um elevador
No último andar. Na cobertura de minha mente.
Sem ente que sustente, sem pavor ou destemor
Sem viver não quero mais

Sou metáfora do que já fui, rascunho de um orgulho bobo
Que não trouxe nada de novo
Sem classe, sem posse. Sem pestanejar.
Nem arder meu peito mais

E da massa disforme, calcinada, que minha vida virou
Tanto tempo faz, sem vergonha ou com pudor
Não me arrependo de meio passo que dei
Sem sofrer eu vivo mais

E do teu peito aberto me despeço
Com a prece de um ateu que tua vida te ilumine
Que cá, meu passo, segue em frente amedrontado.
Sem você, sem complemento.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Descompasso

Meu descompasso, nada tem descompromisso
Nada tem a ver com maço, nada tem a ver com vício
Nada tem de repetido, par-e-passo, eu reconheço
Que o teu abraço, tão perdido e transparente
Fez lar por cá, sem gritar, sem desperdício

O nosso amasso, proibido e diferente
Só não fez desembaraço, só não tez ruborizada
Pois nosso amor, tão explícito e secreto
Tão cantado e tão contido
É nossa casa, nossa cama e nosso chão

Teu descompasso, nada tem a ver com isso
É grito que sai daqui, é urro de "sai daqui"
É prosa que não ouviu, é dor em imensidão
É ar de quem não escuta, de quem é penalizada
Por amar sem chão e querer escutar a razão

Dessas horas, meu grito amado, afago o silêncio
E, empertigado, enlaço meu descompasso
Te puxo pra dançar e, castanhos colados, refletir
Que o enlace se dê, assim tão movediço?
Me ensine a amar sem dor que te darei cada meu passo.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Meu Lugar

Une a pele da magreza de um com a pele queimada e cheirosa no doce afã de fazer eterno o segundo vivido um ano atrás. Era o big bang das almas, das mentes e dos corpos, unidos do jeito que deu, sob guarda-chuvas e com pressa. A pressa de anos e anos. Calaram o Mundo que veio ver o desafogo nas asas dos morcegos que passavam, e até os mosquitos da dengue pararam pra ver. As poças d'água suja ficaram paradas, e assim viu atento o mais vil animal que por ali estava a nos observar. Perceberam a presença do eterno também os bêbados de praça, párias de sua própria sorte, que pediam brindes e discursavam sobre o amor. O amor que ninguém ali tinha visto, nos viu naquele final de noite. Eu vi as pontas dos pés se esticarem, o rosto se erguer e os músculos do pescoço fazerem força pra me alcançar. Eu vi a espera na lágrima da menina, e o encontro solene dos olhos castanhos que se viam eternos pela primeira vez. Era a hora de fazer a nossa vez. E não importava o ponto de ônibus, os carros que passavam depressa por cima das poças ou se teríamos como voltar pra casa depois. Só o que valia era a vida, desarmada e com a garganta calada que começávamos ali. Fizemos da noite trinta e um o passo saltitante de quem foi o grito de paz de um para o outro, a vida que fez do jeito que deu e desembocou daquele modo solene debaixo de um concreto sujo. A chuva choveu pra nos ver. Suor, olhos marejados de espera, a fera no peito queria fugir. E explodiram, lá mesmo. Firmaram promessa de não se esquecerem, tão logo ouviu o primeiro "eu te amo" que nunca pensara um dia ouvir. Era um filme inédito. Seguiram-se os dias, semanas e meses, e as datas trouxeram novas formas de se darem as mãos. Fizeram juntos quase tudo o que dá para se fazer quando se está a dois. Só faltou o restaurante do Largo Machado, que ele reluta em ir, mas a levará no aniversário. São a conta conjunta, uma vida adjunta de quem sonha no mesmo travesseiro com a mente no mesmo lugar. E nem precisam do travesseiro... É que hoje, doze meses depois, descobri que eterno é o que ficou pra trás. Bom mesmo é viver o que fomos como a eterna forma de modelar o que somos. Sempre fomos o que somos agora, amada. Sempre estivemos juntos, antes daqui, e estaremos juntos em cada instante separados que ainda iremos viver. Naquela noite nervosa, suas pontas dos pés forjaram o eterno do metal bruto que alguém determinou pra nós. O tempo parou pra nos ver. A chuva caiu pra nos ver. E sempre para para a gente, e sempre chove pra gente. Seremos sempre dois corpos sob o mesmo guarda-chuva. Seremos sempre o tempo parado, qual fotografia, de cada momento vivido com a intensidade de quem ama de verdade. A prova dos nove do inusitado do encontro, no avançado da hora e - como você bem sabe - da forma engraçada que se deu. Melhor pra quem viveu. Somos juntos sob o mesmo teto preto-estrelado, meu amor. As lágrimas da noite hoje são nossas...

quinta-feira, 15 de maio de 2014

O urro-sussurro

Daqui, do escuro que não vê palmo
Fez-se voz no peito calado, nas cordas caladas, na boca cerrada
Das preces de quem não crê, da alma de quem não vê
Cego, cerrado, despedaçado pelo outrora

Correu avenida, tropeçou sem guia
Esquálido, trêmulo, mortificado
Pois via a dor do peito estraçalhado, sem eira e nem beira
Em sua cegueira, se viu com razão

E pôs-se a pensar nas dores, em vão
- Onde estará o meu lugar?
E muitas outras frases repetidas

A enxergava em cada breu, e por ela era avistado:
Era só cegueira. Era só devassidão.
Ouvia sua voz infantil. Sentia suas promessas de castelos de areia.
Perseguia seus passos em busca de si.

Da dor, fez-se além. E descobriu, num sussurro:
Mesmo sem ser imortal. Mesmo sem ser moribundo.
Quer viver o tempo que lhe resta tateando quem lhe faz bem.
E abraça, tão longe, outra alma sofrida.

Caminhar é perseguir palavras.
Mais do que sonhos, catar poesias no peito.
Ouvir o inesperado desabrochar é sinfonia.
Deixá-lo urrar, de dor ou de felicidade, é o verdadeiro amor.


terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Bitola Elétrica

Há fuligem no chão, rato no canto da rua, saco preto sem coleta, chorume e corpo calcinado nas margens da Brasil. O Brasil é uma grande Brasil, é uma grande Bongaba. Há van que voa nas mãos do motorista velho, bigode branco, que dirige com a esquerda e, com a direita, cobra a passagem. Há curva, porta que abre sozinha, passarela da Brasil, ponto no canto da Dutra, percalço, buzina, som que não cessa de cidade que nem cidade é, um incessante loop de barulho e gente estranha que, janela fechada, atravessa de um canto para o outro, ultrapassa o rio Meriti e redescobre o Brasil nos três ou mais pulos que os quebra-molas, onipresentes, rendem às dores de coluna e às batidas com o queixo no banco da frente.

Há gente parada no bar, arara vendida na feira, mesas e bancos de ferro pintado de amarelo, com uma mão ruim e enrugada de tinta, há rua sem asfalto, terra sem rua, criança empinando pipa, cerol, moto que voa e traqueja, há gente que só quer chegar mais cedo e não quer sair mais tarde. Duas horas para ir, duas horas pra voltar.

Há centenas e centenas de dias e noites minhas, aqui com o pensamento lá ou na mesma cama, na mesma sala, na mesma escada e na parede sem pintura, o interfone, a chave atirada pela janela, os beijos, o som que não cessa de quem quer e não esconde, o abrigo que dá ao meu peito e ao meu sonho, serelepe, de ser por um instante quem sempre quis ser: rei de mim mesmo, senhor de meus amores e vontades.

Há ela, que abraça com força e me pede meu colo, que fala da dor e do ontem, da morte dos outros e da vida que ela fez abrigar, aí sim, diuturnamente em seu peito sem medida um grande amor com o qual não posso concorrer. Há gritaria lá fora, fogos e tiros, há gente de tudo que é canto e de tudo que é jeito de reparar no meu passo desengonçado nos paralelepípedos que me levam até lá. Mas há bom prêmio no final, voz rouca que anuncia sempre o que quero ouvir e que desperta, sem imaginar, um pouco do sonho que matei de morte matada, com corda no pescoço, tantas vezes quando preferi pegar o trem e ir atrás de um grande amor. Para nossa sorte, mudei de ramal.