quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Perfilhar

Tenho sorvido um imenso vazio

Entre providências tão típicas

De bloqueios e ceifares

De tentar premer um botão


Há muito, não vivenciava tais dores

Agruras cotidianas, uma úlcera

Deletério desenlace, coração na mão

O afã de não levantar


Tem sido diferente

Distinto nas causas e consequências

Nada é pior do que ser tomado de amor

Quando isso já não serve de nada...


terça-feira, 2 de agosto de 2022

Metensomatose

 Tenho andado perdido

No descompasso de um calendário

Que desfolhou tudo aqui

E me pôs de joelhos diante do há


Fui um dia, príncipe perverso

Que sem mágoa ou ardor vão

Subverti o que tinha

Em nome do amor eterno


E vivi cálido inferno

Abrasado pela voz doce

Inundado de certezas

Para desfolhar todo mês.


Mal-me-quer?


Madruguei ensanguentado

Despertei tão tarde

A ver-te perder na esquina

Ou achar-te, enfim


Para viver aqui, percluso

Mas livre, pela primeira vez

Par de cotos que apontam para a frente

Braços baldios, braços sem mãos


Braços livres, mas goros

Tudo o que é seu, para sempre

Na mais baldada das intenções

A de esperar pelo trem de uma extinta ferrovia.


Bem-me-quer.


Libertei-me para nada

A mirar o lume de dez dias atrás

O último portal, o seu último túnel

Seus encantos em desalinho


E agora, sem te alcançar jamais

Guardo aqui na chama azul do meu peito

Teu nome em brasa, para nunca mais

Ou para todo o sempre, como sempre fui.


Mal-me-quer.

quarta-feira, 22 de junho de 2022

Espelhado

Tenho me abrasado um bocado

E deitado o dorso sobre a alma carcomida

Quinquilharia de esquina,

Doce mentira de quem só te quis bem

Para abarcar, na morte em vida

O apreço à palavra, o mais antigo erro

De quem sempre preferiu a razão à felicidade

E agora, cortado pela metade

Caminha no escuro sem espaço a tatear

Como um imenso ôco, que não sente os limites

Vendado da maior realidade de todas

A de que não podemos nos alimentar do que é vão

Nem blefar contra o coração, que é soberano

E nos lembra a cada dia que não dá pra fingir.

Deixei o que eu sinto na curva do rio

E vivo o sobejo do que não sou

À espera de um dia me libertar de tanta mentira

De despir essa farsa

E poder ser quem sempre quis

No além do restolho das preces vãs

Abraçado ao que mais quero

Ao que mais sinto, ao que me energiza

E que não esqueci um dia ali

Para não te esquecer jamais.

Parabéns.

quinta-feira, 14 de abril de 2022

Pulsar

Enquanto o coração pulsar,

debruça sobre os meus sóis.


segunda-feira, 4 de abril de 2022

Meu sonho que você não crê

Tenho andado calado

E falado pelos cotovelos

Que a boca pra fora está cheia de azia

A corroer o estômago, a correr de mim

E passado as madrugadas, velado

Em um esparro íntimo de quem viu esvair

E tem algo bem concreto, e insosso

Para abraçar o futuro sem pé e nem cabeça

E aguardar, numa esquina qualquer

Que o milagre imponha a censura

E reinicie as velhas notícias

Notícias trancadas num ataúde raivoso

Embrulhado em panos negros de cetim

Com a leveza das suas mãos, que um dia abraçaram

E agora, ásperas, também andam caladas

Como quem esbraveja a página virada

E não desfaz a tatuagem, impressa em brasa

Um sol no meu braço, para me iluminar

E um furo em minh'alma, por onde ela se despede de mim

Um pouco a cada hora

Até virar do avesso

E ser livre na manhã alumiada

Entregue, mesmo tarde demais

segunda-feira, 28 de março de 2022

Nó górdio

Desprovido de pena, calei minha voz pequena, e senti latejar a enxaqueca que me pegou pelos pés. Estou desalinhado. Meus sapatos, curvados, exibem a sola seca, roída, como se fossem rebentar. Perdi o porvir. Sou algo sem devir, metáfora do aplauso que se dá ao clown de gracejos baratos. Tudo está sem sentido. Sem saber o que valeu, sem guizo no pescoço. Sem perfídia ou altruísmo, sem qualquer apreço ou desânimo por mim. Como um barco de papel, esbarro no mar puído onde me enfiei, como um trapo que escorre e me deixa nu, em escaras, com dores de perdas e mortes por culpas, cotidianas e assoberbadas escolhas que haverão de me levar para o mesmo nada ao que chegaria sem elas. Acabou tudo. E nem começou.