quinta-feira, 26 de agosto de 2021

A forma e o conteúdo

Nada é da vida, mais sórdido

Do que o martelar que há no intuito de esgrimar consigo

Em um cataclisma íntimo

A tirar o véu e derreter

Não de amor, mas do falso brilhante que é a ira

Quando o que há, de fato, em nós

É o afã oposto, o da entrega

Do torpor do proibido, dos prazeres em seus recônditos.

Tenho sido, ainda que me arrastar de dor, eu mesmo

Com minhas vontades e queixas

A albergar o que sinto

E a desejar o que perdi

Por amor ao que sonhei ser

Agora, não sou nem retrato

Só um retalho decepado em cima da mesa.

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

A verdade é que...

A verdade é que somos intransitivos

E vivemos a esperar o barqueiro

Para levar tudo o que há, corrente adentro

Para o mar aberto da nossa memória

Doces e amargos dias

Diapasões que ecoam até onde o som pode ir

Gargalhadas, beijos, prantos

Dias que vivemos, e que se esvaem para a Grande Nuvem

Nuvem inacessível, das perdas inexoráveis

Dias sofridos ou belos, não importa

Tudo está condenado a partir e me deixar aqui

Até o barqueiro vir me buscar

Mas, até o inevitável caminho

Ainda posso ouvir sua voz esvair

E me chamar, cada vez mais ao longe

Mas ainda sua, é ainda você

Que empalidece sem sair daqui

Como um decalque na janela

Que, mesmo rasgado e atirado de cima

Ainda mantém parte da sua cola

O que nos prende, o que nos marca

E o que me habita aqui, tão só

Para nunca mais. Para logo aqui.

Sem esperanças, mas inevitavelmente seu

Até que o vento do mar leve embora tua voz.

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Cutículas inflamadas

Tenho dormido muito

E chorado até adormecer

Abraçado os cães de rua

E sorvido as sarjetas

À procura de um alento

Que é rotundo aqui dentro

Onde o mal espaireceu 

E o bem se embananou

Sóbrio, enfrento a sorte

Entorpecido pela morte em vida

De quem perdeu a felicidade no rolar dos dados

E guardou o brilho do olhar no fundo do armário

Pra te esperar, como um milagre

Na dobradura, no origami da alma

Que reverta tanta dor

E nos reaproxime, em beijo

Constituição

É férrea a vontade de desistir quando o afã de resguardar a respiração parece se esvair, como quando somos oxigenados à mão, por força mecânica. Tem-me faltado o ar. Incrustrado de novas verdades, de rótulos que ferem, pus o que sinto em um camafeu, dobrei e guardei em uma caixinha. De mim, resta a saudade, que levarei para o túmulo. E tudo o que sonhei, que se desfaz no ar a olhos vistos, enquanto arrumo a cama e faço hora para almoçar. A cada volta do ponteiro, me distancio mais. Como se nada houvesse e eu fosse, com toda a justiça, um condenado às galés, remando para me afastar daquilo que mais quero. 

sábado, 14 de agosto de 2021

Caso concreto

A verdade que se movimenta como locomotiva nesta rotunda

É a velha certeza dos versos esmaecidos:

Para todos os lados, um par de olhos

Que me espreitam de volta e se escondem atrás da lona

Como se eu já não fosse mais nada

Um sapo, após quatro dias atrás

Um sátrapa, talvez

Soberano de um coração que decidiu se censurar

Entrementes, também escravo

Com grilhões floridos e uma mordaça de cetim

Porta aberta pra entrar

Tracei em giz aqui

Suas carambolas e pitangas

Bem marcadas ao pé da mesa

Da mesa onde brotou o seu olhar

Olhar de quem faz-de-conta

Olhar de quem muito-quer

Olhar fixo de quem sorveu

E absorveu o que há em mim

Um dia, meu cheiro e meu gosto

Agora, as palavras não escritas

Duas formas de devoção

Uma mesma musa...

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Primeiro dia de todos os outros

Passei o dia sozinho

Sem sair por aquela porta

Com a alma gelada

A expiar meus pecados

E vi, em uma solidão nova

Que as lágrimas do travesseiro que abracei

E enxuguei para logar no Teams

São marcas no meu rosto que envelhece

A registrar dores de amores

E o seu silêncio, batendo fundo

Em um par de óculos que me espreita

E numa esperança que partiu contigo...

Epitáfio

Aqui jaz um trovador

Que quis abraçar o mundo com os pés

E morreu de amor

Ele está seco, ao sol

À espera que lhe enterrem

Pois quis amar demais

E terminou com as vísceras expostas

Rusgas intestinas

Promessas quebradas

Palavras desfeitas

E um balão estourado 

Em sua mão esquerda...


quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Epígrafe

Doze, número forte, foi o esvair da ampulheta em que aqui me debrucei, a lamuriar e celebrar com quem me folheou. Hoje, encerro-me, ao empurrar um penedo sobre minha juventude. Vivi, até aqui, com os nervos expostos de quem muito sonhou e fez. Não posso mais continuar sem casaco. Nem viver a caminhar em meio à brasa. Preciso descobrir o sabor da monotonia, deslindar a formosura daquilo que não a tem. Preciso viver, pois tenho estado em um sepulcro, com doces interregnos de júbilo. À impermanência, prefiro adormecer. E viver como Epicuro, suportando a dor. Do extremado, prefiro nada levar. Despeço-me, a tatear um porvir que haverá de amainar meu sono e desalagar meu pranto.

terça-feira, 3 de agosto de 2021

Sobre lembrança e esquecimento

Esquecer é prática que envenena

Quando lembrar nunca vai sair de nós

Por termos tutano, a guardar a experiência

Que, no frigir dos ovos, é o que conta

Lembro porque existo

Pois não tenho botão de desligar

Lembro porque você está aqui

E eu, aí dentro

E não há vontade que triunfe em retirar

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Cálido pecado

O beijo mais terno

Com sabor de brevidade

Foi como um sopro:

Esvaiu-se de mim, para saltitar em seguida

Para uma gaveta da minh'alma

Que faço toda a questão

De querer sempre abrir

Rebotalho de mim mesmo

Escorei minhas vestes nuas na tua maçaneta

E me envolvi de dores estomacais

Para ver subir, refluxo

A acidez das promessas de eternidade

E lembrei, nesta nossa efeméride

Que dois anos atrás eram só flores

Contidas nas frases mudas

De quem pensava sem dizer

E envolvia, no par de olhares, tantos sonhos

Sonhos que esbocei em um cartão

Para quem, proibido, me estendi

E esbarrei no alívio para colher tempestade

A mais doce de todas as tormentas...

domingo, 1 de agosto de 2021

Entrevero desarmado

Tenho dormido muito

E contado nas pontas dos dedos

Meus dias sem você, febril

Sem que a temperatura suba, suando por dentro

Do avesso, a rolar na cama

A te encontrar nos sonhos

A te abraçar nos cantos

Fazendo segredo do que eu tanto quero

Para poder gritar ao mundo 

Que a ave fez morada aqui

E bate asas, presa na gaiola que sou eu

Prisão do meu próprio brilho, grilhões

Fardo de quem vive da memória do que fui

E das mãos que tive em minha boca

E que hoje, muito perdido

Sinto enxugarem meu pranto

Enquanto acendo a lâmpada no breu

E observo, na linha da vida

A saudade dos meus dias mais felizes