Uma mulher feia desandou a tagarelar, após um ônibus cair do viaduto na Avenida Brasil:
- Na hora em que é a hora, não tem jeito. Não tem papaizinho, não tem mamãezinha que resolva. Nós nascemos sozinhos e morremos sozinhos!
Constrangido, procurei por alguma coisa nos bolsos. Era tarde de uma quarta-feira e eu ainda era gente. A cantilena prosseguiu:
- Eu só sei de mim mesma, do que eu faço e das minhas vontades. O resto é bobagem. Não me fio em ninguém.
Balancei a cabeça negativamente e pedi, em silêncio, que chegássemos logo ao primeiro andar. Sempre tive aversão ao egoísmo. E, embora seja pouco refutável a ideia de que nascemos e morremos solitários - muito embora como toda regra tenha suas exceções para os gêmeos e os desencarnes coletivos - nunca me agradou a ideia de viver para meu bel-prazer. O cálculo é simples e eu explicito por aqui, desde sempre: se for para viver sozinho, eu durmo no albergue da prefeitura e como no pátio da igreja. A afirmativa pode escandalizar os leitores mais frágeis ou gerar incompreensão. O fato é que poupei desde o meu primeiro centavo com um objetivo demarcado, um propósito firme, quase inquebrantável: encontrar minha felicidade no que eu nunca tive, mas sempre senti que seria a sua porta de entrada.
Viver, na minha humilde proposição, é me coçar para arrumar família. Não há nada de mais nobre do que transmitir bons valores a um grupo que surge de você e do seu amor por alguém. Então, mesmo não-religioso, sempre me posicionei em defesa dos valores dela e de sua perpetuação.
É uma questão de gozo pessoal. Acumular, progredir, conhecer, tudo isto me agrada. Porém, como meio. O que me agradaria mesmo seria a certeza de que eu, um dia, chegaria em casa e saberia de verdade aonde estava.
Nos últimos dias, me defrontei com a tristeza mais horripilante que já surgiu na minha cabeça. E penso que pode ser algo de doentio, não tenho como saber. Loucos, todos somos. Mas me parece palpável, e escrevo isto com todas as palavras, que jamais terei minha própria família. Não me derrubam tanto a desilusão, o escárnio de mim mesmo ou a saudade. O que me derruba mesmo, meus amigos, é a desesperança. Jamais me senti tão triste como me sinto agora, quando a esperança se esvaiu. E espero que não leiam estas linhas. Ainda quero ter vergonha delas algum dia e poder abraçar cada um de vocês com a firmeza que sempre me marcou. Por agora, estou encolhido nas cobertas enquanto tem muita gente feliz por aí. Que sejam, com toda a intensidade. No meu peito, a sensação é de que não acordo amanhã. Ainda bem que estarei enganado.
domingo, 7 de abril de 2013
Divagar... se vai ao longe!
- Respiração? zero. Pulso? zero. Não reage e nem conversa. As pupilas estão dilatadas. Anota a hora no prontuário, lavra o documento, salva em PDF. Manda pro cartório. E os sonhos, pro necrotério. Coberto por um pano azul, o corpo de 1,75m tinha apenas seus pés inchados para o lado de fora. De cada lado de um dos pés, uma marca de chinelo. O rosto estava oculto, as mãos recolhidas, bem fechadas, como quem não quisesse soltar o que de mais precioso havia para segurar. Por sobre o peito, um documento molhado registrava o nome de um suicida: Lucas Cardoso Alvares.
No carnaval de 2012, o jovem de 24 anos se atirou do alto das pedras do Arpoador. Foi pouco depois encontrado por um barco de pescadores, recolhido e levado para o hospital. Lá, tomaram-lhe os sinais e constataram o óbito. No velório, desolador, todos se entreolharam sem dizer uma palavra. Pediram a um religioso que lhe encomendasse a alma. Relutante, ele aceitou. Era um frei franciscano. Afinal, aos olhos da igreja, que a tudo perdoa, ele havia se desequilibrado e caído involuntariamente no mar.
Atenderam ao desejo do menino, e ofereceram a ele uma última morada ao lado dos avós, em um jazigo de mármore preto, de frente para a rua. Ali, as pessoas poderiam passar por ele e se lembrar com maior facilidade. Seu computador foi delicadamente encaixotado e mandado para o depósito da família, em Saquarema. Não quiseram ver suas mensagens. Suas roupas, doadas para os pobres, os vestiram de Borelli, Dartigny e outras marcas da moda. Seus sapatos foram distribuídos entre os irmãos, dois, e seus livros também foram colocados em caixas de papelão.
Seus amigos choraram no caixão, fizeram um especial sobre seus melhores momentos no rádio e levaram uma garrafa de Coca-Cola para "beber o defunto", oferecendo a ele o último gole de sua bebida preferida. Sua ex-namorada estava lá. Discursou, disse que eles sempre teriam uma fita colada nos pulsos com seus nomes e respondeu, com os olhos caídos, aos olhares perfurantes de quem lhe imputava culpa por uma morte tão dolorosa.
Pois que se matou, como Torquato Neto. Como Mayakovsky. Como Assis Valente. Foi ao encontro do não-sabia-bem-o-porquê de braços abertos, como um pássaro vestido de preto que, em um ato de desapego, optou por abandonar todos os seus.
Só que não.
Naquele 19 de fevereiro de 2012, ele decidiu não morrer. Sempre teve pavor da ideia da morte dolorosa e mais pavor ainda do que acontece depois da morte com os descrentes como ele. Decidiu engolir as lágrimas, que já quase haviam dobrado o oceano de volume, calçar os chinelos e dar meia volta. Foi para o Humaitá. Abraçou os amigos, pediu perdão por sua fraqueza e recomeçou a vida porque sabia que era preciso, por tabela, refazer as coisas suas do melhor jeito possível.
E se pôs a escrever. Texto acadêmico, texto jornalístico, prosa e poesia. Pendurou nas paredes, fez juras a um amor que não viria e ajudou, inconteste, quem lhe apunhalara pelas costas. Daquele dia em diante, pôs um amigo em um abraço, outro amigo no outro e foi caminhando mesmo sem saber andar. Em algum tempo, já punha os pés no chão. Depois, foi ele quem pôs os amigos nos ombros.
E o fez da forma mais simplória e desesperançosa. Ele sabia que não conseguiria, que não chegaria lá. Mas faria do jeito que desse, seguiria a cartilha do que é bom e do que é certo e abraçaria forte quem lhe oferecesse carinho quando o mortificar lhe batesse à porta.
Eis que abriu a porta do quarto, saiu e não voltou mais. Bebeu bons goles de felicidade, abraçou mais e mais, ouviu, sonhou um pouco e acordou, sozinho, incompleto mas útil como um daqueles volantes marcadores que não aparecem para a torcida em um jogo de futebol mas cumprem a sua função muito bem.
E vieram mais montanhas de textos. Tantos que já nem cabiam mais no quarto. Falava da tristeza e da alegria com a desenvoltura de quem vivera os dois lados em plenitude. Com o tempo, virou especialista nos extremos. E passou a aconselhar, ouvir, auscultar corações e recomendar remédios que ele mesmo produzia com suas letras e verbos. Para muitos, ele se tornou um remendador de corações.
Pois quando já não via mais felicidade, no momento em que assimilara a sua missão no planeta de servir ao outro, descobrira da forma mais inesperada, doce e eterna que valera a pena não pular do penhasco. Valera a pena viver, ainda que em sobrevida. Um pássaro pousou em seu ombro na fila do teatro e se pôs a conversar em sons ininteligíveis - é claro, esta não é uma fábula - o quanto seria bom passar a vida inteira a voar pelos mares do sul, pousar nas copas das árvores e beber a água cristalina que caía de uma cascata de clichês apaixonados de quem já não queria outra coisa na vida.
E foram tantos mares, águas e árvores, tantas palavras e juras, tantos sonhos e planos. "É tão bom sonhar com você. Mesmo que nada disso aconteça". Em um mundo de desamor e desapego, Lucas queimou a língua. E se pôs a escrever. Dedicatórias, declarações, rascunhos dos proclames de casamento, comentários embevecidos para os amigos. Já não queria mais voar ao lado de outro pássaro.
Ao ensinar a voar quem só tinha magros braços no lugar de asas, a amarela calopsita o fez bater as penas e não cair no abismo. Mostrou que felicidade é alívio. E, com o peito em brasa, começou a construir seu ninho. Recolheu galhos e folhas, fez sacrifícios, cantou para subir. Desbravou o que não conhecia, retornou ao que não esperava. Fez contas, na ponta do lápis, de como fazer para a vida não desbotar. Cumpriu à risca o receituário que indicara aos amigos de como amar sem humilhar, de como construir sem devastar. Fez derramar lágrimas, contra seu gosto, e fez das tripas coração para fazê-las secar em seguida.
E foi ali que ele bailou pela primeira vez. Dormiu pela primeira vez. Sentou à beira da praia, se bronzeou, lavou a louça. Viveu a plenitude inexpugnável de quem não tem dúvidas e nem contestações.
E bebeu cada filme, cada peça. Sorveu cada prato de comida. Devorou o corpo, alimentou a alma. Teve tudo do bom e do melhor.
Mas, calopsito, preso pelo pé e de asas cortadas, não sabia voar. Deixou também que os males do mundo lhe corroessem um pouco do estômago. E fez voar quem lhe propunha morada eterna. Monogâmico, se atirou sob uma coberta de lã cor-de-laranja. Da mesma cor de um guarda-chuva. E se põe a cantar o que nem aprendeu na espera doída do que não vem mais. Quando sozinho, molha os travesseiros. Quando entre os seus, abraça e consola.
Este é o meu destino. O destino de quem escolheu como missão de vida viver para o outro. Quem lê este blog desde o início, sabe que eu não morri e que ainda continuarei por aqui, em palavras e sonhos, se um dia conseguir me virar de calopsita em outro pássaro qualquer. Por enquanto, monocórdio, sofro do mesmo mal de sempre: meu coração tem nome. E não é o meu.
No carnaval de 2012, o jovem de 24 anos se atirou do alto das pedras do Arpoador. Foi pouco depois encontrado por um barco de pescadores, recolhido e levado para o hospital. Lá, tomaram-lhe os sinais e constataram o óbito. No velório, desolador, todos se entreolharam sem dizer uma palavra. Pediram a um religioso que lhe encomendasse a alma. Relutante, ele aceitou. Era um frei franciscano. Afinal, aos olhos da igreja, que a tudo perdoa, ele havia se desequilibrado e caído involuntariamente no mar.
Atenderam ao desejo do menino, e ofereceram a ele uma última morada ao lado dos avós, em um jazigo de mármore preto, de frente para a rua. Ali, as pessoas poderiam passar por ele e se lembrar com maior facilidade. Seu computador foi delicadamente encaixotado e mandado para o depósito da família, em Saquarema. Não quiseram ver suas mensagens. Suas roupas, doadas para os pobres, os vestiram de Borelli, Dartigny e outras marcas da moda. Seus sapatos foram distribuídos entre os irmãos, dois, e seus livros também foram colocados em caixas de papelão.
Seus amigos choraram no caixão, fizeram um especial sobre seus melhores momentos no rádio e levaram uma garrafa de Coca-Cola para "beber o defunto", oferecendo a ele o último gole de sua bebida preferida. Sua ex-namorada estava lá. Discursou, disse que eles sempre teriam uma fita colada nos pulsos com seus nomes e respondeu, com os olhos caídos, aos olhares perfurantes de quem lhe imputava culpa por uma morte tão dolorosa.
Pois que se matou, como Torquato Neto. Como Mayakovsky. Como Assis Valente. Foi ao encontro do não-sabia-bem-o-porquê de braços abertos, como um pássaro vestido de preto que, em um ato de desapego, optou por abandonar todos os seus.
Só que não.
Naquele 19 de fevereiro de 2012, ele decidiu não morrer. Sempre teve pavor da ideia da morte dolorosa e mais pavor ainda do que acontece depois da morte com os descrentes como ele. Decidiu engolir as lágrimas, que já quase haviam dobrado o oceano de volume, calçar os chinelos e dar meia volta. Foi para o Humaitá. Abraçou os amigos, pediu perdão por sua fraqueza e recomeçou a vida porque sabia que era preciso, por tabela, refazer as coisas suas do melhor jeito possível.
E se pôs a escrever. Texto acadêmico, texto jornalístico, prosa e poesia. Pendurou nas paredes, fez juras a um amor que não viria e ajudou, inconteste, quem lhe apunhalara pelas costas. Daquele dia em diante, pôs um amigo em um abraço, outro amigo no outro e foi caminhando mesmo sem saber andar. Em algum tempo, já punha os pés no chão. Depois, foi ele quem pôs os amigos nos ombros.
E o fez da forma mais simplória e desesperançosa. Ele sabia que não conseguiria, que não chegaria lá. Mas faria do jeito que desse, seguiria a cartilha do que é bom e do que é certo e abraçaria forte quem lhe oferecesse carinho quando o mortificar lhe batesse à porta.
Eis que abriu a porta do quarto, saiu e não voltou mais. Bebeu bons goles de felicidade, abraçou mais e mais, ouviu, sonhou um pouco e acordou, sozinho, incompleto mas útil como um daqueles volantes marcadores que não aparecem para a torcida em um jogo de futebol mas cumprem a sua função muito bem.
E vieram mais montanhas de textos. Tantos que já nem cabiam mais no quarto. Falava da tristeza e da alegria com a desenvoltura de quem vivera os dois lados em plenitude. Com o tempo, virou especialista nos extremos. E passou a aconselhar, ouvir, auscultar corações e recomendar remédios que ele mesmo produzia com suas letras e verbos. Para muitos, ele se tornou um remendador de corações.
Pois quando já não via mais felicidade, no momento em que assimilara a sua missão no planeta de servir ao outro, descobrira da forma mais inesperada, doce e eterna que valera a pena não pular do penhasco. Valera a pena viver, ainda que em sobrevida. Um pássaro pousou em seu ombro na fila do teatro e se pôs a conversar em sons ininteligíveis - é claro, esta não é uma fábula - o quanto seria bom passar a vida inteira a voar pelos mares do sul, pousar nas copas das árvores e beber a água cristalina que caía de uma cascata de clichês apaixonados de quem já não queria outra coisa na vida.
E foram tantos mares, águas e árvores, tantas palavras e juras, tantos sonhos e planos. "É tão bom sonhar com você. Mesmo que nada disso aconteça". Em um mundo de desamor e desapego, Lucas queimou a língua. E se pôs a escrever. Dedicatórias, declarações, rascunhos dos proclames de casamento, comentários embevecidos para os amigos. Já não queria mais voar ao lado de outro pássaro.
Ao ensinar a voar quem só tinha magros braços no lugar de asas, a amarela calopsita o fez bater as penas e não cair no abismo. Mostrou que felicidade é alívio. E, com o peito em brasa, começou a construir seu ninho. Recolheu galhos e folhas, fez sacrifícios, cantou para subir. Desbravou o que não conhecia, retornou ao que não esperava. Fez contas, na ponta do lápis, de como fazer para a vida não desbotar. Cumpriu à risca o receituário que indicara aos amigos de como amar sem humilhar, de como construir sem devastar. Fez derramar lágrimas, contra seu gosto, e fez das tripas coração para fazê-las secar em seguida.
E foi ali que ele bailou pela primeira vez. Dormiu pela primeira vez. Sentou à beira da praia, se bronzeou, lavou a louça. Viveu a plenitude inexpugnável de quem não tem dúvidas e nem contestações.
E bebeu cada filme, cada peça. Sorveu cada prato de comida. Devorou o corpo, alimentou a alma. Teve tudo do bom e do melhor.
Mas, calopsito, preso pelo pé e de asas cortadas, não sabia voar. Deixou também que os males do mundo lhe corroessem um pouco do estômago. E fez voar quem lhe propunha morada eterna. Monogâmico, se atirou sob uma coberta de lã cor-de-laranja. Da mesma cor de um guarda-chuva. E se põe a cantar o que nem aprendeu na espera doída do que não vem mais. Quando sozinho, molha os travesseiros. Quando entre os seus, abraça e consola.
Este é o meu destino. O destino de quem escolheu como missão de vida viver para o outro. Quem lê este blog desde o início, sabe que eu não morri e que ainda continuarei por aqui, em palavras e sonhos, se um dia conseguir me virar de calopsita em outro pássaro qualquer. Por enquanto, monocórdio, sofro do mesmo mal de sempre: meu coração tem nome. E não é o meu.
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