domingo, 20 de maio de 2012

Sobre um apanhado de amaranhados

Foto: Marc Ferrez
Todos os dias de sol em Botafogo, o moleque empinava o peru e, desinibido, fazia xixi pelas frestas das grades da varanda. Era sempre o mesmo ritual: chegava da escola e, inebriado pelo aroma da panela de pressão, aninhava a tartaruga Jurema entre os vasinhos de plantas ornamentais, baixava cuidadosamente o short azul e praticava a sua dose diária de afronta à ordem. Um dia, depois de tantas vezes ser surpreendido pelos pais e a babá e não se fazer de rogado, o menino percebeu que o que saía do quinto andar em algum momento chegaria ao playground. E, lá, correria o risco de atingir o cocoruto de alguém. Só ali ele percebeu que o que fazemos daqui com a maior satisfação, provocará incômodo cavalar no que for atingido, mesmo quando não sabemos quem.

Todas as manhãs de chuva em Botafogo, quando a mãe medrosa imaginava um filho-de-açúcar e o mantinha sob as cobertas enquanto seus vinte e cinco coleguinhas empunhavam lancheira e mochila e iam para a aula, o menino emburrava e, ocioso, dedicava-se a escutar um som vindo de longe, distinto de todos os que já havia ouvido na televisão, no rádio ou nas fitas cassete que seu avô gravara em Marajó com os cantos dos pássaros. D. Antônia, a fiel babá, filha de escravos, lhe explicara: era o som do amolador de facas. O pai dela, liberto pela Lei Áurea, se instruiu no ofício e, de peixeira na mão e carapinha engomada, serviu de modelo para uma das famosas fotos de Marc Ferrez sobre o dia-a-dia dos trabalhadores da cidade. O assovio que entoava hinos de times de futebol e das forças armadas lhe invadia os ouvidos e clamava, solene, pela velha mania dos perguntadores: que que eu vou ser quando crescer?
Eis que o menino, gordo, botafoguense e de olhos pretos respondeu com “sustança”: amolador de facas. Sim! O homem que afia a faca e assovia ao mesmo tempo! E assovia tão alto que mais parece metal do que carne. E todas as manhãs, de chuva ou de sol, o garoto procurava o amolador pelas ladeiras do velho bairro de Rui Barbosa. Ouvia o som de longe e, quanto mais perto, mais longe ficava. Disseram-lhe que o homem trabalhava atrás do muro, quase na pedreira. Ora, mas amolador de facas as amola nas ruas! E, no fim das contas, que lógica há em amolar facas se podemos nos servir de novas? Amolam-se aquelas que pertenceram aos nossos bisavós. Das novas, presentes do casamento de seus pais envoltas em um faqueiro de madeira, não se lembrava de ganharem novo fio. Afinal, que sentido faz amolar o que se pode trocar com tamanha facilidade?

Como todo menino acorda antes da mãe só pelo prazer de vê-la acordar, todas as vezes em que a garganta – que inflamava toda hora – estava em dia, ele se punha a conversar com a tartaruga sobre o amolador. Ia para a aula com a pancinha cheia de arroz, feijão e bife-de-panela e, após se apertar pelas ladeiras e pedras portuguesas enquanto segurava o dedo indicador do pai com uma mão e um picolé de uva com a outra, iniciava o solene ritual do xixi despudorado e despreocupado de quem está lá embaixo. Aprendera as primeiras letras por aquele tempo. E escreveu, em uma folha dessas de controlar a caligrafia, pela qual as irmãs auxiliares da escola tanto zelavam: “o tempo passa na cabeça da gente como a faca é amolada nas mãos do amolador”. Foi o seu primeiro verso, composto ao som de uma fita da Fafá de Belém. E desistiu de molhar as crianças do play, de conhecer de perto o amolador – seu novo amigo invisível – e de ensinar Jurema a falar. Afinal, logo ela o deixaria – para sempre – ao se embrenhar em uma mata em Maricá. E o menino, saudoso de sua tartaruga, se pôs a embalar na cadeira de balanço da bisavó, manhã após manhã, de sol ou de chuva, em Botafogo ou já no Leme, para onde se mudaria depois com os pais e seus irmãos bebês. Tornou-se, bem cedo, um reflexivo.
Vinte anos depois, quem aprendeu a ler e escrever com quatro continua lendo e escrevendo muito mal. O aperto, todas as vezes em que chega da rua, permanece o mesmo: agora devidamente desafogado em um vaso de plantas na área de serviço. D. Antônia foi contar feijão no céu e as fitas cassete do avô estão em alguma caixa de papelão por aqui. Ah, o velho foi pra Marajó e nunca mais voltou! E já fazem dez anos. O amolador de Botafogo viciou em éter e agora perambula despido da cintura para baixo, apelidado pela sabedoria popular como “Bob”. O picolé de uva não é mais fabricado, o pai continua a ser puxado pelo dedo indicador e a mãe aprendeu a acordar antes de seus três filhotes começarem a piar no ninho. A tartaruga? Essa não voltou mais. Dizem que foi, on foot, de Maricá até Miguel Pereira. Ali, teria encontrado uma menina mais velha que a aninhou e lhe deu alface, até que terminasse seus dias entre os dentes de uma chihuahua. Dias antes de partir dessa para uma melhor, Jurema lhe confidenciou que falava mesmo. E deu a dica: “desce já daí e vai lá pegar o menino pelo dedo indicador”.  Ela não se fez de rogada.

Com o desapego dos que nunca acertaram, ele descia ladeiras do Rio Comprido com a mochila nas costas – e agora sem lancheira. Foi então que os dois, já graúdos, foram mágica. Os pedidos do quelônio foram atendidos ao esfregar de uma lâmpada mágica chamada “bolsa”, que fez surgir de dentro o texto de um tal Marshall McLuhan que ele tanto precisava ler. Para ontem. E aí que o menino, de tão feliz, tornou-se de novo menino sem nunca deixar de ter sido. E se pôs a urinar por entre as grades, sempre “pela última vez”. Eis que começaram as intempéries: todas as vezes, o que era descartado como ruim ou gasto era atirado à mesma direção. Empapada pela desfaçatez de quem – como todos os outros – tem mil defeitos, ela se lembrou do caminho soprado por Jurema e decidiu se embrenhar pela mata. Sozinha. E o menino da varanda, nas manhãs de sol com o canto das cigarras ou nas de chuva com o zumbizar dos mosquitos, se pôs a amolar sozinho a faca do que viveram, como o último dos amoladores. Realizou seu sonho, mas fez dele tão seu que agora afia só o que usou, enquanto os outros trocam facas velhas por facas novas na esquina de casa.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Nada mais importa

Cada vez é uma pedrada nova no meu coração: por trás do "não dá", se escondem o sufoco, o pessimismo e a desesperança. Que seja, colombina. Afinal, já fui bem feliz nesta vida. Só não me disseram como é que eu faço pra ser feliz sem você...

domingo, 13 de maio de 2012

Alma Penada

Das mortes, eu levo as dores-poderes
Que fabricas em teus afazeres
Das vozes, teus tons dissonantes
Que cavam a cova profunda
E falam da voz nauseabunda
Que trago no peito calado

Espalho que a dor, tão solene
É mancha nas nódoas da lua
Mas ouve, ó deusa da rua
A minha urgência premente
Que sabe da morte que sente
E sangra meu tom, tão brilhante

Pois vivo um amor ofegante
No trem arcaico que abandonaste
Por morte, teu sonho trocaste
Em vida, teu dom me matou
Teu dom de ser tão enganada
Por vozes algozes na madrugada
Que matam sem prevalecer

Em ode ao fim que já tive
Sou prova de um tom tão atroz
Que jura o eterno a uma alma
E vela quem assassinou
No féretro, prova morta de amor
No solo, uma alma penada

terça-feira, 1 de maio de 2012

Sobre ser leve e líqüido

Em suma, quero que suma com tuas frases tortas e dê um beijo na palma da minha mão. Ah, egoísmo! que pede em prece que a prole venha, que esmola amores do outrora, que esmurra a ponta da faca e escala, sem eira nem beira, as montanhas íngremes das mortes e das solas de sapato. Nesta tarde fria do dia que passou, veríamos um filme ruim na tela do cinema. Dividiríamos a pipoca, a fanta laranja e sonharíamos, brigosos, com o miojo e a carne moída do almoço de amanhã. Deitaríamos nas mesmas colchas de sempre e, ao nos amarmos, morreríamos de medo do próximo sábado. Desceu? que jamais tivesse descido. A descontinuidade da suprema felicidade, ao nos atordoar com a beligerância inefável da dor lancinante, é rotunda o suficiente para dizer em letras garrafais que tudo o que é bom acaba e não volta mais. Pois que a razão, danada de se ver, é adversa à luta dioturna, inquebrantável, pelo trazer de volta do nosso sonho em vida. É aí que razão e coração duelam: uma determina que me afaste, o outro que lute até o onipotente ácido sulfúrico da minha mágoa dissolver minha carne e meus ossos. E então, essência eterna, ai de quem disser, em nome do amor, que vivi inerte até o fim e que não lutei por tudo o que prometi. Que digam não fui teu cheiro, tua voz, tuas palavras, teu andar de boneca, teus sorrisos e preces. Que escarrem que não fui tuas mãos a me ensaboar, teus dedos a cortar minhas unhas, teus beijos, teus sonhos. E tão nossos eram os nossos disparates! eu te dei o céu e as estrelas, e tudo o que prometi é verdadeiro e eterno. Isso é ser incompleto. É viver com uma lista de encomendas feitas sob medida e não poder entregar a quem me fez o pedido.