quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Antes de Mais Nada

Antes da prosa, o verso
Antes do verso, a prova
Antes da prova, aprova
E prova o mel da dor

Antes do nada, o tudo
Antes do tudo, o resto
Antes do resto, o pobre
Pobre destino que me reserva

Antes da espera, o erro
Antes do erro, o acerto
Antes do acerto, um dedo
Dedo de prosa com jeito, repito

Antes da dose, o gelo
Antes do gelo, a água
Antes da água, o som
Som do silêncio, som sem razão

Antes do sim, o não
Antes do não, o medo
Antes do medo, a prosa
Prosa de quem ama, sorte mentirosa

domingo, 25 de outubro de 2009

Tensão Pré-Futural

















Véspera de prova de vestibular, segundo antes de bater o pênalti, concurso público, primeiro beijo, primeira mão. Primeira página antes de rodar. Leito de morte, lance de sorte, jogo de azar. Entrevista de emprego, primeiro filho, segundo filho, terceiro filho. Ligadura de trompas. Exame de próstata, filho gay, divórcio, viuvez. Nota de falecimento. E-mail não respondido, telefone fora do gancho, celular desligado. Janela fechada. Luz apagada. Por baixo do edredom, a boneca treme com o amanhã atravessado na garganta. A espinha do futuro fechou-lhe a glote. Não consegue soltar o ar, pois os brônquios não a deixam. Entalada de preocupações, mareja o diário de lágrimas e borra a tinta da velha caneta-tinteiro de seu bisavô. Parker. Mesmo modelo com o qual Roosevelt assinava. Tensões pré-futurais sente a boneca, que agarra com sofreguidão suas tranças de estopa e tenta esconder com as mãos seu sorrido pintado de vermelho em formato de lua. Cara de lua-cheia. Roseia as bochechas ao pensar na madrugada, na qual viu, pela primeira vez, a luz do sol surgir com o pudor de quem descobre o outro sexo. Mal saiu da caixa. Quando a noite cai, as bonecas pensam no amanhã com a autoridade de quem não desenvolveu miolos para ter certezas. A cabeça não serve pra isso, boneca. Serve para matutar, planejar e sorver cada gota de vida que seu algodão puder viver. Serve para ver bater o sol em seus cilhos de mentira, para ouvir o som do mar em seus ouvidos sem orelhas. Serve a vida, boneca, para degustar o simplório agridoce das distensões com o solene paladar de um buon gourmet. Serve a vida, boneca, sorva-a, sirva-a, divida. Se assim achar melhor, a distribua. Sirva os seus sonhos como um tablóide de distribuição gratuita. Compartilhe-os com quem a ama e faça-os vívidos após o amanhecer.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Coração

Perdida por dentro das malhas frias, seus zíperes e paetês, pulsa emérito o músculo roteador. Distribui doses exatas do fluido vital, energizando assim as pontas dos dedos e os fios de cabelo. Torna o peito vivo o anfíbio, gelada criatura de pele lisa. Torna o peito vivo o cão, que acompanha num trote solene os passos de seu dono a afagar-lhe as batatas das pernas. Torna o peito vivo o pensamento humano, que sente, cria e mata. Escapa o homem de sua verdadeira vocação. Ao viver para restringir, absorver e se apoderar, comete ato de traição contra a essência divina de seu próprio funcionamento: o ato de distribuir.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Lucky Luke

















Sonhei certa vez com caixão com detalhes em ouro-de-tolo nos braços de dragões vestidos de azul. Chapéus compridos enfeitados com faixa vermelha, farda pregada de botões brancos. Nos ombros, uma crina de cavalo para cada. Lenços sacudiam no ar, oradores inflamados se levantavam, velhas secavam as lágrimas com os dedos gordinhos, jovens praguejavam contra o inevitável. Sonhei certa vez que, após meu próprio funeral, visitava meu avô em um casarão. Lá, sem que houvesse um só móvel, balançávamos sobre uma cadeira de balanço que não existia e conversávamos sobre a vida e o tempo. Carregavam meu caixão, já durante o reencontro, soldados dos Dragões da Independência. O esquife, de aspecto rústico, parecia ter saído de algum enterro de abolicionista. Patrocínio, Rebouças. Dom Obá, talvez. Era o caixão marrom com dobrões de ouro, receptáculo dos resquícios de quem sangrou gargantas e corações pelo Brasil. Não havia viúva, nem filhos. Nem amigos conhecidos. Nem meus pais, ou qualquer rosto do qual pudesse me recordar. Apenas os braços calmos do velho avô, cálida recepção aos campos do além-túmulo, a acalmar o defunto com a voz suave de quem cantarolava o canto dos pássaros. E voltava mais duas ou três vezes para a multidão inerte, intercalando as frases sábias do ancião com as lágrimas de partida dos que não conheci. Por estas linhas, anos pra cá, servi à alma de tantos que me leram e se acalentaram com a leitura de uma alma. Encaixotado no esquife dos que libertam, perdi-me de qualquer possibilidade de fazer o Brasil virar do avesso tal qual meus sonhos do dia e da noite me mostravam ser possível. Mais duas pernas e dois braços, tornei-me pés rachados da lavoura e mãos suadas de cansaço. Na televisão pebê da sala, vi brasis e angolas. Vi guerras, sangue e dor. Não vi mais a alma dos que enxergam na vida as suas nuances de roteiro cinematográfico. Ao menos, resta-me o brasão de ser autêntico defensor do bloco das autenticidades, do levantar de sobrancelhas que difere um indivíduo do colega ao lado. No frigir dos ovos, fui até bem talentoso. Visto de perto, ao trocar a lupa pelo microscópio, talvez um gênio de mim mesmo. Experto de minhas possibilidades, tudo fiz por minhas realizações. Entrementes, só me restou o cabo da enxada. A foice, o martelo, a chave Phillips. Multinacionalizei a minha dor e a minha decepção. Só minha. Autêntica. Autoral.

domingo, 4 de outubro de 2009

Coisas Que Eu Quis Ser

Subi na biga sem cavalos ao acreditar no passado. Parado no atoleiro, perdi de vista o horizonte e permaneci estático, sob o peso de uma armadura de cobre e ferro que se sobrepunha a uma não menos pesada malha de metal. Com o escudo furado, me escondi dos tiros certeiros de velhas catapultas na carcaça da rústica biga. Com o capacete chamuscado, troquei tapas com a morte e abracei cada suspiro com gestos de delírio. Cavaleiro perdido das trovas inúteis, fui goleiro de várzea contra matador de cinco estrelas. Fiz milagres, catei borboletas. Sobrevivi. Caminhei sobre um fio de nailon, saltei em uma xícara de café e não a quebrei, corri pelo buraco de uma agulha. Fui alfinete em fralda de bebê. Sacerdote de minha insignificância, bradei aos céus meu pobre destino: montado em meus nobres devaneios, sentir o gosto anilado das glórias retumbantes. Ser um farrapo condecorado. Com o pescoço a prêmio, me esquivei da má sorte com a agilidade de um esquilo. Saltei os obstáculos do haras, voei pelas rodas de fogo. Fui herói de mim mesmo. Ao contrariar as contrariedades, me libertei do olhar de paisagem e percebi meu mundo com visão além do alcance. Empunhando a espada do esfarrapado, construí moinhos de vento, castelos de areia e salões para a mendicância. Eu fui rei de mim mesmo. Observei por dentre as almas que por ali passavam, uma só que cândida, observasse o passar do tempo com os olhos castos de quem cantava coisas de amor. Encontrei na alma ao lado, aqui ao lado, o caminhar, o descansar e o porvir. Encontrei a mão amiga, a voz serena e o abraço eufórico dos reencontros. Descobri novas terras, naveguei novos mares e até conheci o ar. Respirei fundo na espera, marejei os olhos por horas, enxuguei as lágrimas mortas e as vivas também. Lavei muitos rostos, beijei muitos pés, afaguei muitos dedos. Fiz muitos bolos de nozes. Aguardei como presságio a chegada da donzela, desfrutei das coisas do mundo e do espirito, amei como ninguém mais amaria ou pensaria em amar. Molhei cartas, músicas, barrigas e fios de cabelo. Praguejei contra o passado. Sob a névoa da serra, jurei amor eterno. Na rede, na cama, no chão ou na poltrona, vivi do amor, pois só o amor me bastava. Vivi por todos os cantos uma única toada. Percebi muitas dores, conheci dissabores, enfrentei outros fins. Dissertei sobre o ontem, o hoje e o amanhã, apostei no milhar e ganhei dois vinténs, fui viver embaixo da ponte. Mas vivi, de fato, o amor na cavalgada. Sereno, casto, perdido, choroso, risonho, rasgado, profano, maldoso, puro, vermelho, rosa, admirável, invejado, estático, movimentado, solitário, acompanhado, sagrado, devasso, ansioso, paciente, interno, esperto, inconseqüente e eterno.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

O Reich de Fried

O Brasil dos negros pintados de branco e o artilheiro dos 2.000 gols

Por Lucas Alvares, com colaboração de Mario Vasconcellos

Houve o tempo em que a cobertura jornalística das partidas de futebol se assemelhava à adotada até hoje por ocasião das edições do Grande Prêmio Brasil de Turfe, no Jockey Club Brasileiro. Quem folhear exemplares das “Revistas Illustradas” do início do século passado, terá a impressão de que o mais popular de todos os esportes era um grande evento social voltado para a grã-finagem que, após um footing pela Lagoa, assistia a uma partida entre Paissandu e Fluminense em um campo de aparência varzeana, porém de griffe.

O que os dândis da Zona Sul não sabiam é que, enquanto a bola rolava no gramado da Rua Guanabara, primeiro campo do Fluminense, o futebol desabrochava nos subúrbios da Central do Brasil. Já em 1895, pouco depois de Charles Miller introduzir o esporte bretão em São Paulo, o também britânico Thomas Donohoe fundou o primeiro time da Fábrica de Tecidos Bangu, embrião do clube oficialmente fundado em 1904. Foi no Bangu, ao mesmo tempo dos matches entre Fluminense, Botafogo, Paissandu e América, os quatro grandes da belle èpoque, que os primeiros negros foram aceitos no elenco principal de um clube carioca. No ano seguinte à sua inauguração oficial, o alvirrubro da Zona Oeste escalou Francisco Carregal, um tecelão da fábrica e notadamente mulato, como titular de sua equipe em uma partida contra o Fluminense, realizada no dia 14 de maio de 1905.

Enquanto o negro Carregal vestia as cores banguenses, um outro negro – Benjamin de Oliveira – fazia sucesso com o primeiro clown do teatro brasileiro, o Beijo. Benjamin, um mineiro de Pará de Minas, era admirado desde o fim do Segundo Reinado por suas interpretações apaixonadas de clássicos do teatro universal, como “Otelo”. O palhaço, negro de poucas misturas, pintava o rosto de branco mesmo nas interpretações mais sóbrias, nas quais os trajes de palhaço era desnecessários. Nilo Peçanha, governador do extinto estado do Rio de Janeiro entre 1903 e 1906 e, posteriormente, Presidente da República entre 1909 e 1910, morreu em negativas do óbvio: era mulato. O “Pobre Mulato”, como a ele se referiam seus opositores, se opôs às oligarquias galicistas que até então governavam estados e a União, terminou seus dias como candidato derrotado à presidência e alvo dos maiores impropérios por parte dos setores conservadores da população.

Carregal, Benjamin e Nilo são três personagens de um país no qual apenas 20% da população era alfabetizada, e aonde a consciência que faria brotar a luta pelos direitos civis dos afro-descendentes não passava do campo do discurso de um pequeno grupo de intelectuais. A grosso modo, as decisões sobre a vida e a morte no Brasil continuavam a ser tomadas nos salões dos clubes sediados na Rua do Ouvidor e nas confeitarias do centro da cidade. Em comum, estes três heróis tiveram o destino: páginas de livros, nomes de ruas e fotografias de arquivo. A nenhum deles se deve a mudança do curso da história o quanto se deve a Artur Friedenreich.

Autor de mais de 2.000 gols, segundo relato do folclórico jornalista paulistano Adriano Neiva da Motta e Silva, o De Vaney, Artur Friedenreich – filho de comerciante alemão com lavadeira negra – trouxe a Seleção Brasileira para o protagonismo do futebol internacional. Em um período em que a mídia se resumia aos jornais de circulação nas capitais e às “Revistas Illustradas”, não menos regionais, Fried – como era conhecido – se tornou o ídolo de uma geração e fez do impopular futebol um pouco menos elitista.

Lenda Urbana

Dono de um chute potente e de uma impressionante facilidade para marcar gols, o artilheiro teria, de acordo com uma lenda urbana propagada nos anos 20, assassinado com uma bolada o próprio irmão durante uma cobrança de pênalti. O jornalista Luiz Mendes, que entrevistou o craque algumas vezes, ouviu a negativa de Fried: “É lenda. Conversei uma vez com o Friedenreich no Maracanã e perguntei a ele sobre essa história. Ele me respondeu que isso não aconteceu por dois motivos. Primeiro, que ele sempre batia pênaltis de forma colocada, não com força e, segundo, que ele era filho único”, relata Mendes. Posteriormente, esta lenda foi atribuída ao meio-campista Perácio, ídolo do Botafogo nos anos 30 e também famoso por suas “patadas”. Alçado ao posto de personalidade, Friedenreich compunha um tipo incomum aos atletas de seu tempo: bebia nas rodas boêmias, aonde tocava violão e cantava modinhas de sucesso. Como filho de um alemão, e a despeito de sua indisfarçada negritude, circulava por entre a grã-finagem da capital paulista. Com um certo torcer de nariz, seus colegas de high society preferiam vê-lo como um “branco-bem-bronzeado”. Foi também o primeiro craque-itinerante. Atuou, como cigano da bola que foi, por clubes de tradições eurocêntricas: Germânia, Ypiranga, Mackenzie, Payssandu, Flamengo, Paulistano, Atlético Mineiro, São Paulo da Floresta e Santos. Ídolo no Rio, São Paulo e Belo Horizonte, atuou também por 23 vezes com a camisa do Brasil. Herói do título Sul-Americano de 1919 contra o Uruguai, marcou 10 gols em 11 anos de convocações para a Seleção.

Friedenreich Hoje

Friedenreich, à esquerda e Pelé, em evento no final dos anos 50.

Após incríveis 26 anos de carreira, Artur Friedenreich se aposentou na temporada de 1935, no Flamengo. Tinha 43 anos de idade. Viveu mais 34, tempo suficiente para ver brotar as gerações vitoriosas de 1938, 1950, 1958 e 1962. Em 6 de setembro de 1969, véspera do Dia da Independência e enquanto o Brasil disputava as eliminatórias para a Copa de 70, o precursor do futebol-arte cerrou os olhos pela última vez, após anos de luta contra uma arteriosclerose. Apelidado de “El Tigre” pela imprensa sul-americana após o título de 1919, Fried não teve do Brasil as homenagens que merecia. Só muito depois de morto, através das obras de jornalistas especializados na memória do futebol como Celso Unzette, Valmir Storti, André Fontenelle e Roberto Assaf, sua carreira foi redescoberta. Assaf, aliás, afirma que Artur Friedenreich seria craque ainda nos dias de hoje, ao contrário do que afirmam os detratores dos primórdios do futebol: “Na terceira partida, forma apurada, e após um punhado de gols e dribles e passes de efeito, voltaria à Seleção Brasileira. Como o fez num tempo em que também existiam pernas-de-pau. Na minha visão, Fried segue sendo um dos cinco principais jogadores da nossa história, numa linha sucessória, ao lado de Leônidas da Silva, Zizinho, Garrincha e Pelé, por tudo que representaram”, exalta Roberto Assaf. Dentre os cinco nomes citados pelo jornalista, nenhum outro teve uma carreira tão longa quanto a de Friedenreich. Nenhum outro vestiu a camisa de tantos clubes, foi ídolo de tantas torcidas ou, segundo afirmam alguns autores, marcou tantos gols. E, finalmente, nenhum outro saiu do nada para o estrelato. Leônidas, Zizinho, Garrincha e Pelé entraram em campo com o futebol popularizado. Friedenreich, ao contrário, virou o jogo com força de tigre e começou a transformar, com seus dribles e gols, o esporte-bretão em paixão nacional e brazilian scratch na “Seleção Canarinho”.