quinta-feira, 15 de outubro de 2009
Lucky Luke
Sonhei certa vez com caixão com detalhes em ouro-de-tolo nos braços de dragões vestidos de azul. Chapéus compridos enfeitados com faixa vermelha, farda pregada de botões brancos. Nos ombros, uma crina de cavalo para cada. Lenços sacudiam no ar, oradores inflamados se levantavam, velhas secavam as lágrimas com os dedos gordinhos, jovens praguejavam contra o inevitável. Sonhei certa vez que, após meu próprio funeral, visitava meu avô em um casarão. Lá, sem que houvesse um só móvel, balançávamos sobre uma cadeira de balanço que não existia e conversávamos sobre a vida e o tempo. Carregavam meu caixão, já durante o reencontro, soldados dos Dragões da Independência. O esquife, de aspecto rústico, parecia ter saído de algum enterro de abolicionista. Patrocínio, Rebouças. Dom Obá, talvez. Era o caixão marrom com dobrões de ouro, receptáculo dos resquícios de quem sangrou gargantas e corações pelo Brasil. Não havia viúva, nem filhos. Nem amigos conhecidos. Nem meus pais, ou qualquer rosto do qual pudesse me recordar. Apenas os braços calmos do velho avô, cálida recepção aos campos do além-túmulo, a acalmar o defunto com a voz suave de quem cantarolava o canto dos pássaros. E voltava mais duas ou três vezes para a multidão inerte, intercalando as frases sábias do ancião com as lágrimas de partida dos que não conheci. Por estas linhas, anos pra cá, servi à alma de tantos que me leram e se acalentaram com a leitura de uma alma. Encaixotado no esquife dos que libertam, perdi-me de qualquer possibilidade de fazer o Brasil virar do avesso tal qual meus sonhos do dia e da noite me mostravam ser possível. Mais duas pernas e dois braços, tornei-me pés rachados da lavoura e mãos suadas de cansaço. Na televisão pebê da sala, vi brasis e angolas. Vi guerras, sangue e dor. Não vi mais a alma dos que enxergam na vida as suas nuances de roteiro cinematográfico. Ao menos, resta-me o brasão de ser autêntico defensor do bloco das autenticidades, do levantar de sobrancelhas que difere um indivíduo do colega ao lado. No frigir dos ovos, fui até bem talentoso. Visto de perto, ao trocar a lupa pelo microscópio, talvez um gênio de mim mesmo. Experto de minhas possibilidades, tudo fiz por minhas realizações. Entrementes, só me restou o cabo da enxada. A foice, o martelo, a chave Phillips. Multinacionalizei a minha dor e a minha decepção. Só minha. Autêntica. Autoral.
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