domingo, 31 de outubro de 2010

Por que sou Livre?



Washington Luís Pereira de Sousa, "paulista de Macaé", 13º presidente do Brasil, tinha 61 anos quando foi deposto do cargo e preso na saída do Palácio do Catete, momento registrado em célebre foto de autoria atribuída a um então jovem Roberto Marinho. Ao deixar a presidência, preocupava-se em envelhecer a aparência em vinte anos: ao pintar barbas e cabelos de branco, se assemelhava a um octagenário. Cultivava hábitos bellepoquianos, fato que gerou ridículo quando a imprensa noticiou o comportamento novecentista de um homem de 1930, e gostava de reunir intelectuais paulistanos para se comparar a Ruy Barbosa.

É este homem, morto em 1957, que Domingos Meirelles, um dos grandes nomes do new journalism no Brasil propôs biografar. Meirelles, um ás da pesquisa, ganhou notoriedade ao biografar personagens controversos de nossa história simplesmente por neles depositar admiração pessoal. Foi assim com Luiz Carlos Prestes em "A Noite das Grandes Fogueiras" e assim seria com Washington Luiz, se o não menos brilhante jornalista e biógrafo José Augusto Ribeiro não lhe fizesse troça: que sentido teria biografar um homem que para a história do Brasil entrou como vilão?

Prócer das causas impopulares, Washington costumava dizer que "a questão social é problema da polícia", e sob esta premissa reprimiu sindicatos, movimentos feministas e nacionalistas. José Augusto Ribeiro, por outro lado, é entusiasmado varguista, e de Vargas o principal biógrafo com sua trilogia "A Era Vargas". Após uma boa aula do veterano editor-chefe de O Globo, Domingos Meirelles mudou o enfoque: Washington Luiz passaria a pano de fundo de "1930: Os Órfãos da Revolução", que tem como objetivo classificar o processo revolucionário advindo do tenentismo como desprezado pelas correntes deste movimento que chegaram ao poder em 1930. Em suma, Vargas teria traído os ideais tenentistas e alijado do poder grandes quadros do movimento na direita como Juarez Távora e Eduardo Gomes e na esquerda, notadamente o ídolo Luiz Carlos Prestes.

E quero aqui fazer um reconhecimento de como pré-julguei a obra de Meirelles, e o quanto ela me foi importante para uma análise lúcida da única causa revolucionária nacional da história do Brasil. Vargas, muito além do transformador que foi, era um homem solene em sua fragilidade, encantador em seus gestos tediosos e eloqüente em uma voz quase muda. É de sua fraqueza, e não de sua força, que surgiram suas maiores vitórias: quanto mais apanhava, mais apoio popular angariava. E fez do suicídio, um ato explícito de fraquejo, a mais heróica das vitórias.

Tudo isto é muito explícito e fácil de se reconhecer. Vargas abriu as portas para as mulheres na política e para os trabalhadores na vida nacional. Ao mesmo tempo, lançou mão do expediente autoritarista ao fotocopiar os regimes europeus, todos embebidos em um ambiente de contra-revolução desnecessário ao Brasil e dissonante de nosso comportamento habitualmente ordeiro e cordial. Portanto, sem jamais excluir o papel transformador das ações de Vargas, tornam-se injustificáveis e inexplicáveis os crimes cometidos pelo Estado Novo.

O Brasil que nasceu hoje vem de uma polarização tão antiga quanto a Batalha do Marne, os filmes de Tom Mix ou os discos de Bahiano. De um lado, a defesa da presença de um Estado de pretensa pujança, mas que se notabilizou nas últimas décadas por ser obeso quando deve ser ágil e fraco quando deve ser forte. Este Estado está no ideário varguista, foi por ele praticado e por seus sucessores - inclusive por Lula - descontruído.

Do outro lado, há o pedaço de Brasil que, ao mostrar sua cara, não vence uma eleição desde 1930 - quando ganhou e não levou com Julio Prestes. Um país de joelhos perante o capital estrangeiro, que pratica relações promíscuas entre a iniciativa privada e o bem público ao rasgar a Constituição e realizar privatizações permeadas por obscenidades morais e descasos administrativos.

O Brasil de Fernando Henrique Cardoso foi o Brasil do arrocho. Tal qual Campos Salles, o sociólogo carioca promoveu a "tática do remédio amargo", tão praticada durante a República Velha por Washington Luiz e tantos outros. Há remédio mais amargo do que um pai de família que perde o seu emprego e não consegue arrumar outro, simplesmente por não haver vagas disponíveis? Há pior remédio do que um Estado que aceita passivamente as práticas empresariais típicass dos grandes proprietários brasileiros? Há pior remédio do que um governante que não reconhece que não há desenvolvimento sem educação e saúde públicas, emprego e renda para todos, de forma indistinta? Há como justificar reformas econômicas que fazem o povo passar fome?

O outro Brasil, o de Lula, é o Brasil do descalabro administrativo. O inchaço descontrolado da máquina pública, que investe onde não precisa e arrocha as mais urgentes prioridades, traz estatais em que convivem trabalhadores das mais diferentes origens: servidores e funcionários públicos, prestadores de serviço, terceirizados, pessoas físicas contratadas como jurídicas e cargos comissionados, muitos cargos comissionados. A indústria do concurso público, semeada pela lógica da desigualdade em que se sustenta intrinsecamente esta "solução administrativa", faz fortuna de muitos oportunistas, e as mais torpes práticas do apadrinhamento são apresentadas como nunca antes visto, nem nos tempos joaninos.

Ambos os Brasis cresceram. É inevitável. Como o Brasil cresceu com Washington Luiz, ao fim das contas. Não há como não crescer com um povo que trabalha como o nosso. Humilhado pelos baixos salários e as condições de trabalho cada vez mais precárias, o brasileiro é o maior patrimônio de nosso país, como era em 1930, 1999, 2007 e continuará sendo com Dilma Roussef. Desprovido de educação de qualidade, saúde pública, acesso aos bens da cultura, respeito aos direitos das mulheres, crianças e idosos, o brasileiro segue em frente e compra o seu pão com o suor de milhões de rostos. Não há como voltar atrás, nem mesmo a sanha lusitana de 1821 conseguiu arrastar o Brasil à primitiva condição colonial com a qual já um dia convivemos.

Quero finalizar com um anúncio importante: anulei meu voto. Se a notícia boa é que o Brasil jamais irá parar de crescer, a má é que crescimento algum é o bastante. E é aí que eu ponho o Brasil de Washington, o de FHC e o de Lula na mesma corveta. Nenhum deles, e vocês irão concordar comigo, deram a nosso povo o que ele de fato merece. Lula, visto com o melhor governo pós-64, fez 10% do que deveria e, antes que os exaltados rebatam, 30% do que poderia. Era mesmo necessário subir ao palanque com Fernando Collor, Roseana Sarney e Jáder Barbalho? Dois não foram eleitos, a outra passou raspando. Será que eles têm tantos votos e poder assim que justifiquem uma aliança tão espúria? Um Estado que não atua em conjunção com os anseios de seu povo está fadado a crescer sem se desenvolver de fato, como um ser incapaz de se emancipar. Não se esqueçam: até os bonsais crescem. Só as árvores frondosas, de raízes livres, se desenvolvem e dão frutos.

Que os acontecimentos de hoje, com a histórica vitória de uma mulher na corrida presidencial, tragam a discussão sobre o Brasil que nós realmente queremos. É o momento de um novo debate: seremos um país que continuará crescendo sem se desenvolver ou uma nação crescida e desenvolvida por inteiro, implacável na defesa da moral pública e de nossas raízes culturais? Só uma nova força política, que comungue o que há de melhor e mais capaz irá conduzir o Brasil a uma quebra do paradigma bi-partidarista e a seu futuro promissor, que repactuará a união entre povo e Estado e fará cumprir as garantias constitucionais aos cidadãos brasileiros, rasgadas e pisoteadas pelas duas forças que hoje se opõem.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Trapiche












Pôs os joelhos rotos nas tábuas secas do piso, os cotovelos e suas peles rachadas no velho colchão e dirigiu o olhar ao céu escuro, em brado:

- Por favor, me faz esquecer, me faz deixá-lo ir.

Pedia pela intercessão que lhe levasse embora, tão logo a morte de seus sentidos e atos viesse. Natimorto, era condenado ao fracasso amoroso desde os primeiros atos. Fez da vida, ainda jovem, um rosário de desgostos e inimizades. Chorou amigos perdidos, amores de esquina e cães-sem-dono com a profusão de quem jamais deixou de acreditar. Como em arrepio, viu a sorte mudar anos atrás, ao encontro de uma jovem voz de alento que o abraçou, o cobriu com uma toalha e lhe enxugou os cabelos. E era a amante mais maternal, cujo toque sereno lembrava o da avó e a grita embebida de amor, em que até os palavrões eram beijos nos pés, eram a expressão maior do carinho de uma mãe pelo filho que não viu mais.

E foram eternos. Amaram-se nas manhãs de inverno, enrolados nas mantas dos chalés, fritaram muitos bifes e omeletes. Riram de ovos podres, assobiaram para os gatos de rua e subiram em palanques imaginários, onde promessas vãs e destratos solenes eram feitos e desfeitos em um piscar d'olhos. Só um dogma jamais fora alterado: eram de um ao outro, em corpo, alma e pensamento. E assim viveram semanas em separado, cada qual em terra distante, sem que as reflexões amorosas os abandonassem por só instante: os dois eram, antes de tudo, a pergunta sobre o que o outro fazia aquele tempo.

Passadas luas, casaram de véu, grinalda e terno preto. Deram recepção, brindaram a champanha e salpicaram arroz em flor. Eram porta-vozes das tradições judaico-cristãs das juras de amor inquebrantável, indissolúvel, indestrutível. Aos pés da Santa Cruz, cobiçaram a eternidade de um instante: o beijo, às juras, que reviveu todos os outros num só. Foram Bergman e Bogart, Di Caprio e Winslet, Chaplin e Goddard, Gable e Leigh, Aguirre e Meza. Foram beijos de cinema.

E filhos, e netos, bisnetos, trinetos... Eram tantos, e já não mais estavam aqui. Foram o que poderiam ter sido. Não foram o que deveriam ter sido. Foram eternos a seu modo, internos todo o tempo e externos só na hora abrupta do adeus. Foram os dois, sentinelas, morte e vida em um ato em falsete, de ópera bufa, de forca sem cadafalso. Foram os dois, tão solenes, peças cômicas de dois prantos que, tão próximos, são a expressão maior do amor que há: o amor deles dois, tão puro e conturbado, tão fúnebre e ressurreto. Há de ser, e ela já nem pede mais: não se abandona o que nasceu conosco.

sábado, 18 de setembro de 2010

Por trás de seus bigodes

Manhã de uma quinta, escadarias da Biblioteca Nacional, Centro do Rio. Reunião para discutir a publicação de Dom Obá, revista voltada para a cultura afro-brasileira e que até hoje não saiu do papel. Lucas Alvares, o poeta Jorge Silva e o ativista Jorge Arruda, da ONG A.F.R.I.C.A e hoje na campanha do camarada Marcelo Sereno Dirceu, do PT. Discutíamos, ano atrás, a cena eleitoral de agora:

- Teremos segundo turno. Tenho fé nas artes de nosso Garotinho, o anjo barroco dos Goitacás. Ele vai complicar o Serginho, sustentei esperançoso.
- Já está tudo acertado. O Garotinho vai renunciar, o acordo já foi fechado. Será o Cabral e mais um. Ou o César Maia, ou o Gabeira, revelou o Arruda.

Decisões judiciais, liminares e ameaças de ambas as partes, Anthony Matheus retirou a candidatura a causar espanto até mesmo a seus mais próximos assessores. Em meio a uma saraivada de cassações, rodaram Anthony, Rosinha, Geraldo Pudim e quase rodou Clarissa, ex-colega dos tempos de movimento estudantil. Tentara, dias antes, uma aliança de última hora com o PRB de Crivella. A coligação PR/PRB/PTdoB levaria o bispo da IURD à oposição de Sérgio Cabral. Receoso, Crivella matutou, consultou seus oráculos e mandou agradecer. Era a cena montada para mais uma ópera bufa do ex-governador: renunciar à candidatura na festa de lançamento de seu próprio nome. Eram 30 dias de junho. Tirou o pagodeiro convertido Waguinho e Carlos Dias, do Movimento Católico Carismático, do bolso e os lançou ao Senado. Ao Guanabara, Fernando Peregrino, que já foi Brizola. Pesquisa IBOPE do início daquele mês dava 21% para Garotinho, que somados aos então 12% de Fernando Gabeira praticamente garantiam um segundo turno contra Cabral.

A renúncia de Anthony Garotinho, quando a tendência ao passar da campanha era a de crescimento no interior do Estado, seu velho reduto, e o prognóstico de um horário eleitoral mezzo a mezzo no 2º Turno parecia inexplicada. Parecia. Seu partido, o da república, o recebeu ano passado sem os temores de um novo PT. Ou, quem sabe, um PDT. Quiçá, PSB. Que tal um PMDB? E vestiu sua 5ª camisa. Resgatado do apartidarismo, Garotinho foi salvo e liberto por uma legenda, o PR de Bispo Rodrigues, Inocêncio de Oliveira, Magno Malta, Waldemar Costa Neto... e do póstumo Enéas Carneiro. E, Enéas, é o xis do problema.

Enéas Ferreira Carneiro, um cardiologista acreano, foi candidato ao Planalto em 1989, 1994 e 1998 pelo minúsculo PRONA, surgido em sua sala de estar em um arroubo pliniosalgadeano. Adoentado e sem quadros que fizessem o partido sobreviver a seu passamento, costurou com os líderes do então Partido Liberal, enlodado pelo Escândalo do Mensalão, a fusão entre PRONA e PL. O caldo resultou no PR, que uniu as duas bancadas na câmara federal. Ainda pelo PRONA, Enéas - nos estertores - foi novamente candidato a deputado federal em 2006. Bem abaixo dos 1,5 milhão de votos de 2002, o mais votado da história do Brasil, faturou 386.905 almas, um número ainda expressivo em se tratando de um homem que, sabidamente, vivia seus últimos dias em mal quase irreversível.

Abaixo dos mil votos, cinco deputados federais rebarbearam Enéas em 2002. Quando da fusão com o PR, apenas um permanecia na legenda. Com a morte do deputado, em maio de 2007, assumiu Luciana Castro de Almeida, do PR de São Paulo, que obteve apenas 3.980 votos em seu próprio nome. Demonstrava o Furacão Enéas um curioso caso onde, servindo-se de uma legislação eleitoral confusa, um partido de bases mais confusas ainda elegia toda uma bancada sem que precisasse trabalhar por qualquer uma das outras candidaturas. Bastava o ex-presidenciável.

Quase quatro anos após a fusão, sem Enéas e com a bancada ameaçada de rigorosa redução, o PR lança mão de dois quadros de força nas urnas. No Rio, a deputado federal o ex-governador Anthony Garotinho. Será o mais votado do estado. Em São Paulo, o "comediante" Francisco Everaldo Oliveira Silva, o Tiririca. Previsão de mais de 1 milhão de votos. Tiririca terá, nas urnas paulistas, dois terços das consciências que conquistou em todo o país no ano de 1996 com as vendas de seu CD de estréia, em que se destacava a embolada "Florentina". Não há anti-candidatura no "Abestado". Não há protesto, deboche ou mesmo desejo pessoal. Tiririca é a tábua de salvação de seu partido. Não se engane com ele, que levará mais 5 a Brasília: votar no Homem de Itapipoca é dar o seu beneplácito a Waldemar Costa Neto, candidato a deputado-sem-votos e sua turma.

Destalentoso

Ah, a falta. Não me faz te esquecer. Daquela tarde suja, daquele teto cinza, daquela grama rala. Não me faz te enobrecer. Sinto-te nos grãos resfriados de ar puro, nos flocos incandescentes da neve que nunca virá. Vejo-te nas tardes praieiras, nas areias que não freqüento, nas mortes vívidas de cada dia. Amo-te embevecido no unir d'olhos e lábios, no mordiscar de meus dentes e no sorver de tua alma. Vivo-te. E vivo tão cálido, temporal, que te espero sem capa e sem marquise. Quero me inundar de teu amor. Quero nadar em tua imensidão, ainda menor do que a minha, em tuas palavras, promessas e dívidas. Quero as tuas cicatrizes, os teus olhos vermelhos, a tua pele morena. Quero e te quero por inteiro, pequena. Quero tua chuva e teu sol, tuas vidas e tua sorte. Quero te abraçar em meu final. Quero te sentir em meu começo.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Independência ou Morte!


Das maiores decepções da campanha de 2010, em todas as suas vertentes, fica por conta da ausência de um debate real sobre o desenvolvimento da Educação no país. Paliativos como a presença de aparelhos de ar-condicionado, alugados a valores extorsivos, em escolas do interior do estado onde o melhor clima é o da janela aberta são discutidos nos confrontos entre os candidatos sem que se toque em um único momento no cerne da questão.

Não há qualquer menção aos graves problemas que o setor enfrenta no Brasil. Vejam: em 2003, tínhamos 16 milhões de analfabetos, sendo 8 milhões concentrados nos 10% de municípios mais pobres da federação. Hoje, 7 anos após, há estados como Alagoas em que 1/4 da população é formada por analfabetos. Considerando os 38,6% de analfabetos funcionais, que são aqueles que lêem mas não conseguem contextualizar, são 64,3% de intelectualmente excluídos. Quase dois terços da população, de mais de 3 milhões de habitantes: é o quadro entregue pelos três ex-governadores que hoje disputam a governança para um novo mandato. Mas não falemos das Alagoas, proporcionalmente muito menor do que os outros estados. Falemos do glorioso Ceará, que soma quase 50% de analfabetos e analfabetos funcionais. É um quadro gravíssimo, que não atinge apenas os estados das regiões norte e nordeste.

É preciso, antes de mais nada, fechar a torneira do analfabetismo. Entrevistei recentemente o professor Mozart Ramos, do programa Todos Pela Educação. Trata-se de uma interessante proposta que traça 5 metas-base para o desenvolvimento da Educação no Brasil: universalização do acesso, erradicação do analfabetismo, aprendizagem, conclusão do Ensino Médio e respeito às obrigações constitucionais de repasse de verbas para a Educação. Exceção feita ao primeiro quesito, em todos os outros houve estagnação ou retrocesso na "Nova República". O índice de analfabetismo ronda os 10% da população há muitos anos, hoje representados em quase 20 milhões de brasileiros. Há enormes desafios relativos à aprendizagem, que nunca esteve tão mal, aos indicadores de conclusão do Ensino Fundamental e do Ensino Médio e, especialmente, ao repasse de verbas do Estado para onde ele deve de fato atuar.

Existem no Rio de Janeiro, notadamente, inúmeras sangrias de verbas públicas na Educação - diretores de escolas que recebem salários miseráveis, muito abaixo do que pede um cargo de gestão, andam em carros do ano e financiam apartamentos em áreas nobres da cidade. Não há, da parte deles, qualquer explicação para a incompatibilidade entre renda e patrimônio. É necessário moralizar o repasse e fiscalizar, através de toda a comunidade escolar, as contas de cada gestão. Isto só pode ser proporcionado através da democratização da escolha das gestões, hoje subordinada às secretarias de educação, o que repete e remete a práticas do regime militar. Democratizar só será possível quando houver, enfim, diálogo entre a SEE-RJ e a SME-Rio com o SEPE.

É importante, também, que o SEPE, que é o Sindicato Estadual dos Professores, se posicione de maneira progressista e evite a sua orientação partidário-eleitoral das últimas décadas, representado que está em partidos sem qualquer vínculo com a realidade como o PCO e o PSTU.

Lutar em prol de Educação pública, gratuita e de qualidade é dever do cidadão e direito de seus filhos e netos. É papel do Estado ouvir atento à sociedade e introduzir medidas afirmativas que ponham fim ao panorama medieval da "Nova República", que em nada alterou em essência o péssimo panorama do período de exceção.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Sobre Probidade


Nem tudo o que é bom está na lei. Nem tudo o que está na lei é bom. Nem tudo o que é bom pode ser legalizado, tampouco o que é mau proibido. A lei, em todas as suas esferas, depende das vontades para se fazer presente. É preciso repreender o vizinho que, por exemplo, joga fora um velho sofá nas escadarias de emergência do edifício. Isto não está e nem estará na lei, mas põe em risco as vidas de centenas de pessoas. Os crimes ambientais, que começam em atitudes despropositadas nos ambientes urbanos, vão do infimo ao catastrófico compartilhando a mesma desatenção ao mundo em que vivemos. É preciso, antes de mais nada, se auto-policiar. A melhor diligência para as más atitudes está no exercício da cidadania. É este exercício, pedagodiário, que irá renovar nossas matas, limpar nossos mares e rios, desbloquear nossas escadas de emergência e tornar mais puro o ar de nossas cidades. É muito simples atacar o grande capital e seus interesses, de já milenarmente conhecidas influências, sem tomarmos atitudes simples em prol do nosso país. Você já pensou em quem vai votar para deputado estadual? Não caia no engodo da Ficha Limpa, analise - sim - a ficha criminal do seu candidato, mas, sobretudo, confirme se sua prática diária converge com a de um cidadão comprometido com a mudança.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Eu também tenho um manifesto

Cadê a verve, a plebe, a mente sã e a voz solene? Cadê o sangue do povo, cadê o dedo do povo, cadê o senso de povo? E o senso do povo, cadê? Fala-se em nome dos brasileiros, mas qual de vocês é, de fato, brasileiro? Vazias de brasilidade, as aspirações de todos vocês são um amontoado de parcerias público-privadas: pagamentos mensais de R$ 900,00 a uma atravessadora pelo aluguel do aparelho de ar-condicionado que adornará, no sol e na chuva, as salas de aula dos colégios estaduais localizados na Zona Sul e na Grande Tijuca, fornecimentos a cargo de um único concessionário - de origem, métodos e anseios obscuros. Assinam sem ler, promovem o caos ambiental, a especulação imobiliária, diminuem o poder de compra do salário mínimo e alardeiam, ao final de cada mandato, o tal "aumento real": saímos do irrisório, chegamos à "Era do Péssimo".

A Constituição de 88, ao adotar como forma de governo um pastiche de presidencialismo que colocou o executivo de joelhos ao legislativo, impôs e eternizou nas diferentes esferas deste poder toda a classe de oligarcas e mafiosos. Alguns me falarão no novo "Ficha Limpa". Você confia na justiça praticada nas Alagoas? no Maranhão? no Amapá? Estão todos aí, candidatos e favoritíssimos a voltar. Sarney nunca foi condenado. Collor, idem. Maluf, desde os tempos do escândalo dos fusquinhas da Copa de 70, jamais deixou a cena política. Confias nas decisões de nosso judiciário?

No intercurso de mais um processo eleitoral que se inicia, é fácil apostar que os atuais mandatários da República não terão qualquer compromisso com o pacto social firmado pelos idealistas que, em 15 de novembro de 1889, saracotearam ingenuamente pelas ruas do Rio de Janeiro atrás do trio elétrico de José do Patrocínio. Não há qualquer ligação, de sangue ou ideais, com os princípios mais elementares da verdadeira democracia e do autêntico espírito republicano. Políticos profissionais, fazem de cada eleição um concurso público: garantia de uma boa aposentadoria e de um plano de saúde tão sofisticado que faria delirar o simples contribuinte, já que oferecem acesso aos mais caros tratamentos no estrangeiro.

Nada tenho contra bons salários e benefícios que favoreçam a quem trabalha. Um dos maiores males do Brasil pós-moderno está na escassez de bons empregos e nos baixos salários. A questão salarial, abandonada pelo governo há 46 anos e nem de longe tocada pela Nova República, exige atenção e medidas urgentes. O custo de vida nas grandes capitais, onde a especulação imobiliária avança com velocidade muito superior às ações administrativas de combate à miséria e promoção do desenvolvimento local, torna a cada dia a vida da verdadeira classe média um tormento de contas e tributos. As privatizações, apresentadas como solução, apenas retomaram o panorama anterior às estatizações - sim, pois a maior parte dos serviços privatizados quase sempre pertenceu à iniciativa privada - com maus serviços e tarifas extorsivas. Pedágios em vias urbanas, a obscena rede de transportes do Rio de Janeiro - que acaba de provocar mais uma tragédia - sistema de telefonia confuso, assim como a aberração administrativa que é a partilha de uma cidade inteira, no caso de Duque de Caxias, entre duas concessionárias de energia elétrica, certamente um descalabro administrativo.
Na Educação, campo no qual militei por anos através do bom movimento estudantil e no início de minha atividade profissional, como coordenador de atividades extra-curriculares, o sucateamento físico das escolas estaduais, que mais parecem velhos presídios, convive com medidas paliativas que em nada atingem o cerne da questão: pouco conhecimento é absorvido, há conhecimento inútil nos programas curriculares e conhecimentos úteis que ficam de fora. Disciplinas ligadas à Era da Memorização, inadeqüadas à Era da Contextualização em que vivemos, são repetidas e incentivadas pelos programas dos vestibulares e concursos públicos, portas de entrada de muitos jovens de classe média para o ensino superior e o mercado de trabalho.

No campo da saúde, com uma distribuição confusa entre as três esferas do Executivo, há ainda a criação de um quarto modelo de gestão: as Organizações Sociais. Quando entregues a grupos comprometidos com a coisa pública, são uma alternativa aos processos burocráticos típicos da administração estatal no Brasil. Quando entregues a mãos erradas, como tem acontecido, são um convite ao peculato e à prática de uma política empregatícia que repete o que há de pior na mentalidade empresarial brasileira: corte de custos através de demissões e arrochos salariais, sem jamais viabilizar novas receitas que permitam admissões e reajustes. Há enorme defasagem salarial entre os celetistas destas organizações e os servidores públicos dos orgãos ligados a elas. Isto advém do dispositivo constitucional que impede o acesso, em todos os níveis e cargos, de brasileiros capacitados a ocuparem postos na administração pública sem que, para tanto, participem do desembestado processo seletivo dos concursos públicos, que ao longo de 22 anos de obrigatoriedade só serviram para financiar a máfia dos cursinhos e entulhar a administração de despreparados "bons-de-prova", processo que não exige competência profissional, compromisso com a coisa pública tampouco preceitos éticos.

O atual panorama, de abandono dos valores democráticos e republicanos, só pode ser sanado com o surgimento de uma nova força: uma força que abarque vontades e se apresente como uma alternativa ao proto-bipartidarismo que vivemos. Somente com a derrota, pelas mãos do povo, dos dois lados da mesma moeda e de seus partidos-satélites, poderemos reintroduzir no Brasil os preceitos defendidos por nossos heróis nacionais - homens, mulheres, negros, brancos e índios que lutaram, seja espontânea ou articuladamente, por um país desenvolvido, justo com seus filhos e portador de uma nova mensagem para o mundo.

terça-feira, 13 de julho de 2010

O Ateu que Psicografava


Joaquim, que creditava o crédito ao descrédito, fechava os olhos todas as noites, respirava fundo e refletia sobre nuvens azuis e abóbadas brancas. Sob a abóbada celestial, a pose firme de um herói helênico sustentava, nos dois braços, o peso de toda a humanidade e de suas responsabilidades. Joaquim, tal qual o Atlas da mitologia, era por dois segundos o sustentáculo de todos nós. Por sua mente jovem e ainda sã desfilavam ninfas, seres errantes e rostos disformes. Gritos, uivos e agudas gargalhadas. Seria o apartamento ao lado? O ateu, tão crente em suas enzimas, descrevia formas e cores, acordes sertanejos e beijos no asfalto. Refletia frases de paixão na água suja da piscina e juras de eternidade em sua colcha empoeirada. Na hora de dormir, deixava para fora tão somente seu par de olhos castanhos. Curiosos, empertigados, eram o olhar pretensamente científico sobre o nosso mundo, tão dele, tão nele, tão reles. Pegava o telefone e pedia comida chinesa: todas as madrugadas, o mesmo ritual. Só assim saía da cama. Só assim voltava para nós. Só assim desacreditava em si mesmo.

sábado, 3 de julho de 2010

É o Fim? É o Fim?

Foto: Ronaldo Moraes/O Cruzeiro

Desespero e desembesto a desfazer os desvalidos impropérios de tua boca. Desnovelo tuas juras falsas, desconverso tuas frases tortas, desentorto tua linha disforme. Defenestro, com louvor, tuas tentativas de desnivelar o nosso amor. Cá desce mais um pouco em cotação o desespero, hoje abafado por vãs esperanças contidas em linhas de trem. Desserto, incerto, disserto um bom tempo sobre o nosso ontem e o nosso amanhã. Confabulo com minhas palmas e meus apupos sobre os palpos de uma aranha, enxergo bem longe tuas teias e armadilhas, me esmero em esperar os teus beijos de musa paraguaia. Pinto-te bem melhor, tal qual musa de Di. Tu estás nas fantasias, musa que nunca houve. Tu estás em estribilho. Tu estás em descompasso.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

No que diz respeito ao tempo


No que diz respeito ao tempo, estou há tempos a pensar nos teus abraços. Sinto falta de tua boca de carmin, de teus cachos cocottes, de teu vestido melindroso... sinto falta de tuas lantejoulas, de teus paetês, de teus carnavais. Sinto falta de nossos bailes nos Fenianos, cem anos atrás, quando as vozes nos brindavam em velhas taças de champanha. Das sessões da Cinelândia, dos bailes de charleston, dos goles de paraty
, das noites de Anno Bom... nada mais restou. Das cennas mudas, os talkies levaram o branco e o preto. Da Cruz de Malta, viva lembrança dos oitocentos, camisa preta deixou de ter e retomou aquela faixa branca dos remadores. De Campos Salles, Rodrigues Alves, Venceslau, Ruy, Pinheiro, Passos, Seabra, dos irmãos Azevedo, de Fred Figner, do bom Bahiano... por onde andam suas velhas almas? por cá, em terra, nada mais restou.
E das serestas nas janelas de uma vila no Lins? Os velhos violões dos portugueses, que entoavam fados lamuriosos, ouvidos pelo povo atento dos cortiços aos salões. Sinto falta de teus limões de cheiro, de tua lata de rapé, de tua língua frita na banha, a melhor da cidade. Já não vejo mais açougues e nem amoladores de facas. Já não me vejo mais aqui. Por cá, melindrosa, cem anos depois jaz quem nasceu após a tua morte para morrer após tua vida. Queria eu te emparelhar. Descanse em paz, meu passado.

sábado, 5 de junho de 2010

Pedra do Sal


Dá cá teus lábios, dadivosa. Derrame em floreios tuas prosas e promessas. Inflama minha entranha, causa estranha palidez. Espoca as champanhas, espanta as campanhas, diz-me a verdade. Suba, melindrosa, os pedregulhos da Pedra do Sal com bons ares e sombrinha. Beijo-te a nuca. Explora-me a cada passo com tuas mãos, toca-me com a suavidade de tua alva pele e espia-me acordar. Me chama, mafiosa. E cada passo teu no requebrar de tuas ancas, sobem os dois brancos cambitos que dão-me esperança: a cada degrau, um mural. A cada querela, uma tela. Enumera, sorridente, os contos alegres de teus dezoito anos. Conta teus pontos, teus mantos, teus sonhos. Conta teu pranto. Morde teus lábios, serena. Pisca teus olhos, e clama: quero-te agora, aqui e pra sempre. Faz-me acordar o corpo na hora e a mente segundos depois, deitado na cama...

domingo, 16 de maio de 2010

Canto Mudo

Me faz pingar cada caldo de meus olhos nas letras azuis de suas linhas corridas. Velho caderno, pequena. Mesmas palavras de sempre, de apreço e juras eternas, convivem com raivas contidas e mortes silenciosas que duram um ou dois segundos para serem sobrepostas pelo renascimento. Mares bravios, céus tempestuosos, terras trêmulas. Carnes fracas. Atravessa comigo cada tormenta minha e cada trovoada sua. Ao mesmo barco, almas nuas, dedicaremos cada enjôo em alto mar. Viaja comigo aos gélidos trópicos, encanta as gaivotas do azul e as cobras da terra firme. Pede comigo ao mágico da eternidade a prece por todos os nossos, e espera em camarote a minha procura todas as noites. Puxa o meu pé. Seja fantasma a rondar meus rodeios, seja sombra a cada passo em falso, seja meu guarda-chuva e meu guarda-sol. Seja meu beijo de boa-noite. Viva a cada dia de minhas juras, renove-as, faça-as suas. Cumpra-as. Morra minha companheira, e me acompanhe até além. Atravesse as portas comigo. Marque um passeio na esquina do interminável, na noite estrelada que embeleza até a velha e suja praça do Rio Comprido onde o amor se fez presente.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Saudade à Manivela

Tanto tempo faz que o tempo não nos vê que até que dá saudade de te ver. Saudade do cordão, colombina! Ensaboa os cravos com esfoliante, espalha bem o creme hidratante, pinta a cara e pinta a boca, pinta os olhos de azul. Põe as lentes, os cílios postiços, o pompom na cabeça e vai pra rua brincar ao som da marcha-rancho. Não me leve a mal. Aqui ou em Madagascar, somos duas vozes na folia, somos quatro pés de carnaval. Plantamos raízes de pés de alface nos canteiros de obras, bebemos água do poço e caçamos rãs no quintal. Do poder da tristeza, fomos cassados. Somos tal qual duas vozes em uníssono, que entre espirros e cochichos cantam a mesma poesia doce dos apaixonados: a bela construção que, carnavais a carnavais, atravessam quartos de século, se aprofundam e se embelezam a cada nova fantasia.

domingo, 9 de maio de 2010

Como Num Traçado

Vejo tua alma exposta às carnes num painel de beijos dadivosos. Atirada à cova dos leões, brada aos céus contra a morte, a triste vida e a própria sorte a qual foi aprisionada ao nascer e ser posta ali. Era filha de maus pais, e muito mais, era filha de ninguém, era filha de um alguém que nunca soube lhe amar. Era Catarina a doce purga dos pecados por eles deixados muito antes dali, imersos na lama ressecada dos catadores de caranguejos. Catarina catou lixo, vendeu papelão e quinquilharia, pôs o burro no lombo e foi burro-sem-rabo. Amassou o diabo no pão e comeu tal sanduíche, escavou terrenos baldios, procurou a velha pedra verde do avô. Catarina foi mito e foi lenda, foi Afrodite nas terras brasileiras, foi peso e papel na pena dos que dela tiveram. E a tiveram. Muitas vezes, muitos homens a amaram. E não se acabrunharam. Catarina foi dó de todas as almas, envolta aos lençóis brancos dos motéis. De cheirosos, tais lençóis só têm o cheiro. Foi janela aberta no Palácio do Rei, mãos segurando o tampo da mesa enquanto os pés, bem branquinhos, escoravam-se em suas pontas. Menina perdeu-se solenemente na selva urbi, sem outras mãos ou beijos, dedos ou anéis que lhe emergissem. Banheiras de hidromassagem, cadeiras eróticas, saunas a vapor depois, Catarina foi princesa no mundo das noites: mariposa, pousou e posou muitas vezes para quem lhe viesse. É, Catarina... atire a primeira pedra!

sábado, 1 de maio de 2010

Música de Concerto

Pinga-chuva... pinga-fogo, guarda-chuva! Pinga pensamento de gato pingado sobre os bons valores da eternidade. Pinga jeito de princesa, pinga-fera, pinga mar. Pinga até pinga da boa, pinga-chuva, pinga amar. Cai do céu festim de festa, pinga a vista, vá chorar... pinga o tempo, pinga a hora, há de o tempo terminar. Pinga pêra, pinga amora, pinga flor do teu cocar. Pinga-chuva, chove tudo, canivete e tosse de vaca, pinga a morte, pinga a vida, pinga até feliz cantar. Pinga às quintas, esperadas, pinga pr'eu te ver passar. Pinga o resto da semana cá em minh'alma, pinga azar!

sábado, 24 de abril de 2010

E o Coração? Lá...



Assopra com gosto o bolo de cinco anos, pequena. Seus cabelos pretinhos, tais quais os meus, esvoaçam à guisa da brisa da praça do Leme. Cá, dez amiguinhos festejam a filha d'eles dois. Rostos meigos de imberbe ingenuidade, sem os traçados riscados pelo tempo - ainda que breve. Alvíssaras e claques celebram o fruto do nosso ventre, o rebento de nossos desaires. Desalinhamos lá atrás, esperamos mesmo assim o futuro como bons partners e assobiamos, juntos, na espera de um porém. Não o encontramos. Sem poréns, pusemos nossos pés lado a lado e caminhamos sem carro nem moto por uma estrada de areia e lama. Almas pantanosas. Passaram-se tantos anos... O que é festejar um filho? É vermos, felizes, o sabor da missão cumprida em uma união de mais dissabores do que festejos. Não me venha com gracejos. Hoje é só um dia nosso. Nosso e de nós três, com as almas na praça e a peça encenada do futuro que ainda não vi.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Pancadas num Quarto Escuro














Basta! Besta de quem vê além o mal que se tem cá mesmo. Vê assim, meu jasmim, o quão ressentido é o amor que se perdeu no córner do tempo. Passou tal qual poeira a dobrar a esquina, a procura de um ralo para rodopiar ao lado dos cabelos perdidos de alguém. Redemoinhos de pavor. Afoguei-me em caldo de dor, narinas tampadas, boca a urrar um grito abafado pela força da água: tirem-me daqui! Quero voar sozinho sobre as lagoas sujas, pousar nas hóstias dos padres e mentir ao palavrório desconexo das vozes dissonantes. Basta! Veja bem, meu jardim suspenso foi cancelado: obra de mil anos, parou nos primeiros cem, quiçá um pouco menos, nem sei ao certo. Nosso reino verde das samambaias de salão se perdeu com um fusível queimado três horas atrás. Apagou-nos a luz. Prometeu dar-lhe de novo, acaso o caso valer. Valei-me! Vê cá bem, meu jardim de jasmim, não dá para ser cerejeira em flor sem que tu creias em meus queixumes. Sinto saudades de teus perfumes, de todos, e de tuas bossas alegres. Desejo teus olhos verdes com o ardor dos sapatinhos de cristal. Ou seja, sem ardor algum. Que sejas retrato na porta do meu armário. Amém.

segunda-feira, 29 de março de 2010

Afresco

Em que pese o sabor gelado dos ventos do outono, vi teu rosto sardento desvelar três cachos castanho-avermelhados. Era o bater do sol do fim da tarde, dos dias que esturricam às seis para congelar duas horas depois. Somos só vulto negro no chão, tal qual incinerados por bomba atômica. É caloroso o prazer dos aplausos que ouvimos ali, três passos daqui, nas tumbas cavadas do que há de mais antigo e erudito. Há de ser bem nosso. As sardas marrons, bem latinas, me trazem o som portunhol, o estalar dos lábios rosados. Quero senti-los molhados, sob a chuva ou o guarda-chuva, sob o sol ou o guarda-sol.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Como Dois Passos de Dança

Como dois passos de dança, quero teus pés bem junto aos meus. Mesmo que meus passos se entrepassem, quero ouvir um bom compasso sussurrar em meus ouvidos. Se os sonhos se estreparem, dê-me apenas uma das mãos no intrépido afã de se dar um passo a mais. Um a mais, só um. Outro a mais, caberá na perda do gol. A brisa gelada da neve ou do gelo contrasta com o ardor esturricado da Presidente Vargas, que nos parte em mil porções de kibe cru. Quero a neve! E de passo em passo, do bem apertado ao mais comprido, sou você bem perto assim. Nos rostos colados, maçãs encostadas e olhos fitando o mesmo ponto morto logo ali. Ressucitai o ponto morto. Fazei dele um sonho distante de despreocupação. Baila comigo no clamor da eternidade, me enfrenta e me atiça como gélida flama que queima o peito de um jeito ou de outro. Esquenta e esfria a dor, estranha e agita o amor, me faz com furor te amar até as profundezas. Me abraça por um instante, me agarra como a um diamante, minta que sou o maior de todos os tesouros. Faz de mim, ao menos, o inegociável. Só mais um passo, leva ao fim o nosso número, para aplauso geral: me ensina o mover de pernas e braços que faz o homem levitar até o fim dos nossos dias.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Pé-de-Pano














Quero a máscara de face, pintada de preto e amarelo, tal qual Benjamin de Oliveira. Cá atrás, novecentistas, traço tintas e passo letras de armar e desmontar. Letras de sons, cheiros e imagens. Letras sórdidas de saudosas memórias. Letras pérfidas de caudalosas tormentas. Cá atrás, cem anos mais, sigo além nos perdidos caminhos da solidão. Me amafanho e me masso com as dores esofágicas causadas, quem sabe, por um copo de cerveja ou uma xicará de café. Bebo nem um, nem outro. Quero pra perto de mim os olhos castanho-escuros e a pele morena de boneca, o abraço malvado de quem aperta a mão e puxa as orelhas. Não quero mais minhas orelhas, e nem o meu nariz. Quero meu cabelo de volta. Quero a feijoada com o rabo do porco, o nariz do porco e o joelho do porco. Só assim é que vale. Quero os restos do que sobrar, migalhas por onde passar e, quem sabe, um pouco do olhar mais perdido que já vi. Quero amassar, amarrar, embebedar e embevecer de alegria e tristeza que, irmãs, surgem aflitas e eufóricas das estranhas d'alma humana. Quero a máscara que chora e a máscara que ri, ao menos uma vez ao mesmo tempo: quero um mau sorriso, e quem sabe uma boa lágrima.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Lânguidos Versos

Desacerte a hora, desacelere o carro, pare bem na contramão. Atrase os ponteiros, pise no freio, seja relapso. Cuide do tempo com sutil imprudência, para embeber os dedos e lábios nas gotas do néctar de seus melhores dias. Beba também dos piores. Beba os defuntos, os bebês e os moribundos. Beba o tempo de um gole só. Mate menos mosquitos, reclame menos do calor ou do frio, fale menos no elevador. Vai mais uma rodada de vida! Ouça histórias e estórias, cante contos e aponte os pontos de desacertos. Abrace com força cada peça do quebra-cabeça. Saia bêbado de lembranças, a trocar os pés na pressa de quem não pode esperar o tempo passar pela vida sem que a vida passe solene pelo tempo perdido.