segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Trapiche












Pôs os joelhos rotos nas tábuas secas do piso, os cotovelos e suas peles rachadas no velho colchão e dirigiu o olhar ao céu escuro, em brado:

- Por favor, me faz esquecer, me faz deixá-lo ir.

Pedia pela intercessão que lhe levasse embora, tão logo a morte de seus sentidos e atos viesse. Natimorto, era condenado ao fracasso amoroso desde os primeiros atos. Fez da vida, ainda jovem, um rosário de desgostos e inimizades. Chorou amigos perdidos, amores de esquina e cães-sem-dono com a profusão de quem jamais deixou de acreditar. Como em arrepio, viu a sorte mudar anos atrás, ao encontro de uma jovem voz de alento que o abraçou, o cobriu com uma toalha e lhe enxugou os cabelos. E era a amante mais maternal, cujo toque sereno lembrava o da avó e a grita embebida de amor, em que até os palavrões eram beijos nos pés, eram a expressão maior do carinho de uma mãe pelo filho que não viu mais.

E foram eternos. Amaram-se nas manhãs de inverno, enrolados nas mantas dos chalés, fritaram muitos bifes e omeletes. Riram de ovos podres, assobiaram para os gatos de rua e subiram em palanques imaginários, onde promessas vãs e destratos solenes eram feitos e desfeitos em um piscar d'olhos. Só um dogma jamais fora alterado: eram de um ao outro, em corpo, alma e pensamento. E assim viveram semanas em separado, cada qual em terra distante, sem que as reflexões amorosas os abandonassem por só instante: os dois eram, antes de tudo, a pergunta sobre o que o outro fazia aquele tempo.

Passadas luas, casaram de véu, grinalda e terno preto. Deram recepção, brindaram a champanha e salpicaram arroz em flor. Eram porta-vozes das tradições judaico-cristãs das juras de amor inquebrantável, indissolúvel, indestrutível. Aos pés da Santa Cruz, cobiçaram a eternidade de um instante: o beijo, às juras, que reviveu todos os outros num só. Foram Bergman e Bogart, Di Caprio e Winslet, Chaplin e Goddard, Gable e Leigh, Aguirre e Meza. Foram beijos de cinema.

E filhos, e netos, bisnetos, trinetos... Eram tantos, e já não mais estavam aqui. Foram o que poderiam ter sido. Não foram o que deveriam ter sido. Foram eternos a seu modo, internos todo o tempo e externos só na hora abrupta do adeus. Foram os dois, sentinelas, morte e vida em um ato em falsete, de ópera bufa, de forca sem cadafalso. Foram os dois, tão solenes, peças cômicas de dois prantos que, tão próximos, são a expressão maior do amor que há: o amor deles dois, tão puro e conturbado, tão fúnebre e ressurreto. Há de ser, e ela já nem pede mais: não se abandona o que nasceu conosco.

Um comentário:

Blog do Mario disse...

que inspiração, hein rapaz ?? parabéns, coisa de quem domina as letras com maestria !!

abraços

Mario