sexta-feira, 2 de outubro de 2009

O Reich de Fried

O Brasil dos negros pintados de branco e o artilheiro dos 2.000 gols

Por Lucas Alvares, com colaboração de Mario Vasconcellos

Houve o tempo em que a cobertura jornalística das partidas de futebol se assemelhava à adotada até hoje por ocasião das edições do Grande Prêmio Brasil de Turfe, no Jockey Club Brasileiro. Quem folhear exemplares das “Revistas Illustradas” do início do século passado, terá a impressão de que o mais popular de todos os esportes era um grande evento social voltado para a grã-finagem que, após um footing pela Lagoa, assistia a uma partida entre Paissandu e Fluminense em um campo de aparência varzeana, porém de griffe.

O que os dândis da Zona Sul não sabiam é que, enquanto a bola rolava no gramado da Rua Guanabara, primeiro campo do Fluminense, o futebol desabrochava nos subúrbios da Central do Brasil. Já em 1895, pouco depois de Charles Miller introduzir o esporte bretão em São Paulo, o também britânico Thomas Donohoe fundou o primeiro time da Fábrica de Tecidos Bangu, embrião do clube oficialmente fundado em 1904. Foi no Bangu, ao mesmo tempo dos matches entre Fluminense, Botafogo, Paissandu e América, os quatro grandes da belle èpoque, que os primeiros negros foram aceitos no elenco principal de um clube carioca. No ano seguinte à sua inauguração oficial, o alvirrubro da Zona Oeste escalou Francisco Carregal, um tecelão da fábrica e notadamente mulato, como titular de sua equipe em uma partida contra o Fluminense, realizada no dia 14 de maio de 1905.

Enquanto o negro Carregal vestia as cores banguenses, um outro negro – Benjamin de Oliveira – fazia sucesso com o primeiro clown do teatro brasileiro, o Beijo. Benjamin, um mineiro de Pará de Minas, era admirado desde o fim do Segundo Reinado por suas interpretações apaixonadas de clássicos do teatro universal, como “Otelo”. O palhaço, negro de poucas misturas, pintava o rosto de branco mesmo nas interpretações mais sóbrias, nas quais os trajes de palhaço era desnecessários. Nilo Peçanha, governador do extinto estado do Rio de Janeiro entre 1903 e 1906 e, posteriormente, Presidente da República entre 1909 e 1910, morreu em negativas do óbvio: era mulato. O “Pobre Mulato”, como a ele se referiam seus opositores, se opôs às oligarquias galicistas que até então governavam estados e a União, terminou seus dias como candidato derrotado à presidência e alvo dos maiores impropérios por parte dos setores conservadores da população.

Carregal, Benjamin e Nilo são três personagens de um país no qual apenas 20% da população era alfabetizada, e aonde a consciência que faria brotar a luta pelos direitos civis dos afro-descendentes não passava do campo do discurso de um pequeno grupo de intelectuais. A grosso modo, as decisões sobre a vida e a morte no Brasil continuavam a ser tomadas nos salões dos clubes sediados na Rua do Ouvidor e nas confeitarias do centro da cidade. Em comum, estes três heróis tiveram o destino: páginas de livros, nomes de ruas e fotografias de arquivo. A nenhum deles se deve a mudança do curso da história o quanto se deve a Artur Friedenreich.

Autor de mais de 2.000 gols, segundo relato do folclórico jornalista paulistano Adriano Neiva da Motta e Silva, o De Vaney, Artur Friedenreich – filho de comerciante alemão com lavadeira negra – trouxe a Seleção Brasileira para o protagonismo do futebol internacional. Em um período em que a mídia se resumia aos jornais de circulação nas capitais e às “Revistas Illustradas”, não menos regionais, Fried – como era conhecido – se tornou o ídolo de uma geração e fez do impopular futebol um pouco menos elitista.

Lenda Urbana

Dono de um chute potente e de uma impressionante facilidade para marcar gols, o artilheiro teria, de acordo com uma lenda urbana propagada nos anos 20, assassinado com uma bolada o próprio irmão durante uma cobrança de pênalti. O jornalista Luiz Mendes, que entrevistou o craque algumas vezes, ouviu a negativa de Fried: “É lenda. Conversei uma vez com o Friedenreich no Maracanã e perguntei a ele sobre essa história. Ele me respondeu que isso não aconteceu por dois motivos. Primeiro, que ele sempre batia pênaltis de forma colocada, não com força e, segundo, que ele era filho único”, relata Mendes. Posteriormente, esta lenda foi atribuída ao meio-campista Perácio, ídolo do Botafogo nos anos 30 e também famoso por suas “patadas”. Alçado ao posto de personalidade, Friedenreich compunha um tipo incomum aos atletas de seu tempo: bebia nas rodas boêmias, aonde tocava violão e cantava modinhas de sucesso. Como filho de um alemão, e a despeito de sua indisfarçada negritude, circulava por entre a grã-finagem da capital paulista. Com um certo torcer de nariz, seus colegas de high society preferiam vê-lo como um “branco-bem-bronzeado”. Foi também o primeiro craque-itinerante. Atuou, como cigano da bola que foi, por clubes de tradições eurocêntricas: Germânia, Ypiranga, Mackenzie, Payssandu, Flamengo, Paulistano, Atlético Mineiro, São Paulo da Floresta e Santos. Ídolo no Rio, São Paulo e Belo Horizonte, atuou também por 23 vezes com a camisa do Brasil. Herói do título Sul-Americano de 1919 contra o Uruguai, marcou 10 gols em 11 anos de convocações para a Seleção.

Friedenreich Hoje

Friedenreich, à esquerda e Pelé, em evento no final dos anos 50.

Após incríveis 26 anos de carreira, Artur Friedenreich se aposentou na temporada de 1935, no Flamengo. Tinha 43 anos de idade. Viveu mais 34, tempo suficiente para ver brotar as gerações vitoriosas de 1938, 1950, 1958 e 1962. Em 6 de setembro de 1969, véspera do Dia da Independência e enquanto o Brasil disputava as eliminatórias para a Copa de 70, o precursor do futebol-arte cerrou os olhos pela última vez, após anos de luta contra uma arteriosclerose. Apelidado de “El Tigre” pela imprensa sul-americana após o título de 1919, Fried não teve do Brasil as homenagens que merecia. Só muito depois de morto, através das obras de jornalistas especializados na memória do futebol como Celso Unzette, Valmir Storti, André Fontenelle e Roberto Assaf, sua carreira foi redescoberta. Assaf, aliás, afirma que Artur Friedenreich seria craque ainda nos dias de hoje, ao contrário do que afirmam os detratores dos primórdios do futebol: “Na terceira partida, forma apurada, e após um punhado de gols e dribles e passes de efeito, voltaria à Seleção Brasileira. Como o fez num tempo em que também existiam pernas-de-pau. Na minha visão, Fried segue sendo um dos cinco principais jogadores da nossa história, numa linha sucessória, ao lado de Leônidas da Silva, Zizinho, Garrincha e Pelé, por tudo que representaram”, exalta Roberto Assaf. Dentre os cinco nomes citados pelo jornalista, nenhum outro teve uma carreira tão longa quanto a de Friedenreich. Nenhum outro vestiu a camisa de tantos clubes, foi ídolo de tantas torcidas ou, segundo afirmam alguns autores, marcou tantos gols. E, finalmente, nenhum outro saiu do nada para o estrelato. Leônidas, Zizinho, Garrincha e Pelé entraram em campo com o futebol popularizado. Friedenreich, ao contrário, virou o jogo com força de tigre e começou a transformar, com seus dribles e gols, o esporte-bretão em paixão nacional e brazilian scratch na “Seleção Canarinho”.

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