domingo, 31 de outubro de 2010

Por que sou Livre?



Washington Luís Pereira de Sousa, "paulista de Macaé", 13º presidente do Brasil, tinha 61 anos quando foi deposto do cargo e preso na saída do Palácio do Catete, momento registrado em célebre foto de autoria atribuída a um então jovem Roberto Marinho. Ao deixar a presidência, preocupava-se em envelhecer a aparência em vinte anos: ao pintar barbas e cabelos de branco, se assemelhava a um octagenário. Cultivava hábitos bellepoquianos, fato que gerou ridículo quando a imprensa noticiou o comportamento novecentista de um homem de 1930, e gostava de reunir intelectuais paulistanos para se comparar a Ruy Barbosa.

É este homem, morto em 1957, que Domingos Meirelles, um dos grandes nomes do new journalism no Brasil propôs biografar. Meirelles, um ás da pesquisa, ganhou notoriedade ao biografar personagens controversos de nossa história simplesmente por neles depositar admiração pessoal. Foi assim com Luiz Carlos Prestes em "A Noite das Grandes Fogueiras" e assim seria com Washington Luiz, se o não menos brilhante jornalista e biógrafo José Augusto Ribeiro não lhe fizesse troça: que sentido teria biografar um homem que para a história do Brasil entrou como vilão?

Prócer das causas impopulares, Washington costumava dizer que "a questão social é problema da polícia", e sob esta premissa reprimiu sindicatos, movimentos feministas e nacionalistas. José Augusto Ribeiro, por outro lado, é entusiasmado varguista, e de Vargas o principal biógrafo com sua trilogia "A Era Vargas". Após uma boa aula do veterano editor-chefe de O Globo, Domingos Meirelles mudou o enfoque: Washington Luiz passaria a pano de fundo de "1930: Os Órfãos da Revolução", que tem como objetivo classificar o processo revolucionário advindo do tenentismo como desprezado pelas correntes deste movimento que chegaram ao poder em 1930. Em suma, Vargas teria traído os ideais tenentistas e alijado do poder grandes quadros do movimento na direita como Juarez Távora e Eduardo Gomes e na esquerda, notadamente o ídolo Luiz Carlos Prestes.

E quero aqui fazer um reconhecimento de como pré-julguei a obra de Meirelles, e o quanto ela me foi importante para uma análise lúcida da única causa revolucionária nacional da história do Brasil. Vargas, muito além do transformador que foi, era um homem solene em sua fragilidade, encantador em seus gestos tediosos e eloqüente em uma voz quase muda. É de sua fraqueza, e não de sua força, que surgiram suas maiores vitórias: quanto mais apanhava, mais apoio popular angariava. E fez do suicídio, um ato explícito de fraquejo, a mais heróica das vitórias.

Tudo isto é muito explícito e fácil de se reconhecer. Vargas abriu as portas para as mulheres na política e para os trabalhadores na vida nacional. Ao mesmo tempo, lançou mão do expediente autoritarista ao fotocopiar os regimes europeus, todos embebidos em um ambiente de contra-revolução desnecessário ao Brasil e dissonante de nosso comportamento habitualmente ordeiro e cordial. Portanto, sem jamais excluir o papel transformador das ações de Vargas, tornam-se injustificáveis e inexplicáveis os crimes cometidos pelo Estado Novo.

O Brasil que nasceu hoje vem de uma polarização tão antiga quanto a Batalha do Marne, os filmes de Tom Mix ou os discos de Bahiano. De um lado, a defesa da presença de um Estado de pretensa pujança, mas que se notabilizou nas últimas décadas por ser obeso quando deve ser ágil e fraco quando deve ser forte. Este Estado está no ideário varguista, foi por ele praticado e por seus sucessores - inclusive por Lula - descontruído.

Do outro lado, há o pedaço de Brasil que, ao mostrar sua cara, não vence uma eleição desde 1930 - quando ganhou e não levou com Julio Prestes. Um país de joelhos perante o capital estrangeiro, que pratica relações promíscuas entre a iniciativa privada e o bem público ao rasgar a Constituição e realizar privatizações permeadas por obscenidades morais e descasos administrativos.

O Brasil de Fernando Henrique Cardoso foi o Brasil do arrocho. Tal qual Campos Salles, o sociólogo carioca promoveu a "tática do remédio amargo", tão praticada durante a República Velha por Washington Luiz e tantos outros. Há remédio mais amargo do que um pai de família que perde o seu emprego e não consegue arrumar outro, simplesmente por não haver vagas disponíveis? Há pior remédio do que um Estado que aceita passivamente as práticas empresariais típicass dos grandes proprietários brasileiros? Há pior remédio do que um governante que não reconhece que não há desenvolvimento sem educação e saúde públicas, emprego e renda para todos, de forma indistinta? Há como justificar reformas econômicas que fazem o povo passar fome?

O outro Brasil, o de Lula, é o Brasil do descalabro administrativo. O inchaço descontrolado da máquina pública, que investe onde não precisa e arrocha as mais urgentes prioridades, traz estatais em que convivem trabalhadores das mais diferentes origens: servidores e funcionários públicos, prestadores de serviço, terceirizados, pessoas físicas contratadas como jurídicas e cargos comissionados, muitos cargos comissionados. A indústria do concurso público, semeada pela lógica da desigualdade em que se sustenta intrinsecamente esta "solução administrativa", faz fortuna de muitos oportunistas, e as mais torpes práticas do apadrinhamento são apresentadas como nunca antes visto, nem nos tempos joaninos.

Ambos os Brasis cresceram. É inevitável. Como o Brasil cresceu com Washington Luiz, ao fim das contas. Não há como não crescer com um povo que trabalha como o nosso. Humilhado pelos baixos salários e as condições de trabalho cada vez mais precárias, o brasileiro é o maior patrimônio de nosso país, como era em 1930, 1999, 2007 e continuará sendo com Dilma Roussef. Desprovido de educação de qualidade, saúde pública, acesso aos bens da cultura, respeito aos direitos das mulheres, crianças e idosos, o brasileiro segue em frente e compra o seu pão com o suor de milhões de rostos. Não há como voltar atrás, nem mesmo a sanha lusitana de 1821 conseguiu arrastar o Brasil à primitiva condição colonial com a qual já um dia convivemos.

Quero finalizar com um anúncio importante: anulei meu voto. Se a notícia boa é que o Brasil jamais irá parar de crescer, a má é que crescimento algum é o bastante. E é aí que eu ponho o Brasil de Washington, o de FHC e o de Lula na mesma corveta. Nenhum deles, e vocês irão concordar comigo, deram a nosso povo o que ele de fato merece. Lula, visto com o melhor governo pós-64, fez 10% do que deveria e, antes que os exaltados rebatam, 30% do que poderia. Era mesmo necessário subir ao palanque com Fernando Collor, Roseana Sarney e Jáder Barbalho? Dois não foram eleitos, a outra passou raspando. Será que eles têm tantos votos e poder assim que justifiquem uma aliança tão espúria? Um Estado que não atua em conjunção com os anseios de seu povo está fadado a crescer sem se desenvolver de fato, como um ser incapaz de se emancipar. Não se esqueçam: até os bonsais crescem. Só as árvores frondosas, de raízes livres, se desenvolvem e dão frutos.

Que os acontecimentos de hoje, com a histórica vitória de uma mulher na corrida presidencial, tragam a discussão sobre o Brasil que nós realmente queremos. É o momento de um novo debate: seremos um país que continuará crescendo sem se desenvolver ou uma nação crescida e desenvolvida por inteiro, implacável na defesa da moral pública e de nossas raízes culturais? Só uma nova força política, que comungue o que há de melhor e mais capaz irá conduzir o Brasil a uma quebra do paradigma bi-partidarista e a seu futuro promissor, que repactuará a união entre povo e Estado e fará cumprir as garantias constitucionais aos cidadãos brasileiros, rasgadas e pisoteadas pelas duas forças que hoje se opõem.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Trapiche












Pôs os joelhos rotos nas tábuas secas do piso, os cotovelos e suas peles rachadas no velho colchão e dirigiu o olhar ao céu escuro, em brado:

- Por favor, me faz esquecer, me faz deixá-lo ir.

Pedia pela intercessão que lhe levasse embora, tão logo a morte de seus sentidos e atos viesse. Natimorto, era condenado ao fracasso amoroso desde os primeiros atos. Fez da vida, ainda jovem, um rosário de desgostos e inimizades. Chorou amigos perdidos, amores de esquina e cães-sem-dono com a profusão de quem jamais deixou de acreditar. Como em arrepio, viu a sorte mudar anos atrás, ao encontro de uma jovem voz de alento que o abraçou, o cobriu com uma toalha e lhe enxugou os cabelos. E era a amante mais maternal, cujo toque sereno lembrava o da avó e a grita embebida de amor, em que até os palavrões eram beijos nos pés, eram a expressão maior do carinho de uma mãe pelo filho que não viu mais.

E foram eternos. Amaram-se nas manhãs de inverno, enrolados nas mantas dos chalés, fritaram muitos bifes e omeletes. Riram de ovos podres, assobiaram para os gatos de rua e subiram em palanques imaginários, onde promessas vãs e destratos solenes eram feitos e desfeitos em um piscar d'olhos. Só um dogma jamais fora alterado: eram de um ao outro, em corpo, alma e pensamento. E assim viveram semanas em separado, cada qual em terra distante, sem que as reflexões amorosas os abandonassem por só instante: os dois eram, antes de tudo, a pergunta sobre o que o outro fazia aquele tempo.

Passadas luas, casaram de véu, grinalda e terno preto. Deram recepção, brindaram a champanha e salpicaram arroz em flor. Eram porta-vozes das tradições judaico-cristãs das juras de amor inquebrantável, indissolúvel, indestrutível. Aos pés da Santa Cruz, cobiçaram a eternidade de um instante: o beijo, às juras, que reviveu todos os outros num só. Foram Bergman e Bogart, Di Caprio e Winslet, Chaplin e Goddard, Gable e Leigh, Aguirre e Meza. Foram beijos de cinema.

E filhos, e netos, bisnetos, trinetos... Eram tantos, e já não mais estavam aqui. Foram o que poderiam ter sido. Não foram o que deveriam ter sido. Foram eternos a seu modo, internos todo o tempo e externos só na hora abrupta do adeus. Foram os dois, sentinelas, morte e vida em um ato em falsete, de ópera bufa, de forca sem cadafalso. Foram os dois, tão solenes, peças cômicas de dois prantos que, tão próximos, são a expressão maior do amor que há: o amor deles dois, tão puro e conturbado, tão fúnebre e ressurreto. Há de ser, e ela já nem pede mais: não se abandona o que nasceu conosco.