quarta-feira, 21 de maio de 2014
Meu Lugar
Une a pele da magreza de um com a pele queimada e cheirosa no doce afã de fazer eterno o segundo vivido um ano atrás. Era o big bang das almas, das mentes e dos corpos, unidos do jeito que deu, sob guarda-chuvas e com pressa. A pressa de anos e anos. Calaram o Mundo que veio ver o desafogo nas asas dos morcegos que passavam, e até os mosquitos da dengue pararam pra ver. As poças d'água suja ficaram paradas, e assim viu atento o mais vil animal que por ali estava a nos observar. Perceberam a presença do eterno também os bêbados de praça, párias de sua própria sorte, que pediam brindes e discursavam sobre o amor. O amor que ninguém ali tinha visto, nos viu naquele final de noite. Eu vi as pontas dos pés se esticarem, o rosto se erguer e os músculos do pescoço fazerem força pra me alcançar. Eu vi a espera na lágrima da menina, e o encontro solene dos olhos castanhos que se viam eternos pela primeira vez. Era a hora de fazer a nossa vez. E não importava o ponto de ônibus, os carros que passavam depressa por cima das poças ou se teríamos como voltar pra casa depois. Só o que valia era a vida, desarmada e com a garganta calada que começávamos ali. Fizemos da noite trinta e um o passo saltitante de quem foi o grito de paz de um para o outro, a vida que fez do jeito que deu e desembocou daquele modo solene debaixo de um concreto sujo. A chuva choveu pra nos ver. Suor, olhos marejados de espera, a fera no peito queria fugir. E explodiram, lá mesmo. Firmaram promessa de não se esquecerem, tão logo ouviu o primeiro "eu te amo" que nunca pensara um dia ouvir. Era um filme inédito. Seguiram-se os dias, semanas e meses, e as datas trouxeram novas formas de se darem as mãos. Fizeram juntos quase tudo o que dá para se fazer quando se está a dois. Só faltou o restaurante do Largo Machado, que ele reluta em ir, mas a levará no aniversário. São a conta conjunta, uma vida adjunta de quem sonha no mesmo travesseiro com a mente no mesmo lugar. E nem precisam do travesseiro... É que hoje, doze meses depois, descobri que eterno é o que ficou pra trás. Bom mesmo é viver o que fomos como a eterna forma de modelar o que somos. Sempre fomos o que somos agora, amada. Sempre estivemos juntos, antes daqui, e estaremos juntos em cada instante separados que ainda iremos viver. Naquela noite nervosa, suas pontas dos pés forjaram o eterno do metal bruto que alguém determinou pra nós. O tempo parou pra nos ver. A chuva caiu pra nos ver. E sempre para para a gente, e sempre chove pra gente. Seremos sempre dois corpos sob o mesmo guarda-chuva. Seremos sempre o tempo parado, qual fotografia, de cada momento vivido com a intensidade de quem ama de verdade. A prova dos nove do inusitado do encontro, no avançado da hora e - como você bem sabe - da forma engraçada que se deu. Melhor pra quem viveu. Somos juntos sob o mesmo teto preto-estrelado, meu amor. As lágrimas da noite hoje são nossas...
quinta-feira, 15 de maio de 2014
O urro-sussurro
Daqui, do escuro que não vê palmo
Fez-se voz no peito calado, nas cordas caladas, na boca cerrada
Das preces de quem não crê, da alma de quem não vê
Cego, cerrado, despedaçado pelo outrora
Correu avenida, tropeçou sem guia
Esquálido, trêmulo, mortificado
Pois via a dor do peito estraçalhado, sem eira e nem beira
Em sua cegueira, se viu com razão
E pôs-se a pensar nas dores, em vão
- Onde estará o meu lugar?
E muitas outras frases repetidas
A enxergava em cada breu, e por ela era avistado:
Era só cegueira. Era só devassidão.
Ouvia sua voz infantil. Sentia suas promessas de castelos de areia.
Perseguia seus passos em busca de si.
Da dor, fez-se além. E descobriu, num sussurro:
Mesmo sem ser imortal. Mesmo sem ser moribundo.
Quer viver o tempo que lhe resta tateando quem lhe faz bem.
E abraça, tão longe, outra alma sofrida.
Caminhar é perseguir palavras.
Mais do que sonhos, catar poesias no peito.
Ouvir o inesperado desabrochar é sinfonia.
Deixá-lo urrar, de dor ou de felicidade, é o verdadeiro amor.
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