segunda-feira, 30 de maio de 2011

Tribuno, Abdias morreu sem voz

Enquanto nascia em Franca o menino Abdias do Nascimento, em março de 1914, o genial cineasta norte-americano D.W Griffith esbravejava determinações a seu batalhão de figurantes ensopados de tinta preta durante as filmagens do clássico O Nascimento de uma Nação (1915). O épico, que retratou os horrores da Guerra Civil Norte-Americana, reascendeu um dos mais curiosos movimentos culturais da história do ocidente, e que até os nossos dias se faz presente em parcelas da sociedade americana: o lost cause, causa perdida, que via na idéia da supremacia racial o convívio harmônico - desde que em absoluta desigualdade - entre brancos senhores de seu senhorio e negros reduzidos a animais.

O ar de focas-amestradas que a comédia minstrel, encenada no sul dos Estados Unidos até os dias de hoje, dá aos negros - musicais, alegres, festivos e submissos - é um eco da causa perdida sulista, imortalizado no bielorusso Al Jolson também pintado de preto em O Cantor de Jazz (1927). Homem que ajudou a abolir a tinta no teatro brasileiro, Abdias, casado havia muitos anos com a norte-americana Elizabeth Larkin, foi exilado nos EUA e vivenciou em terras ianques a quebra de um paradigma.

Ao sobreviver a 97 longos anos, brotou no Brasil pós-escravidão, cresceu em uma jovem República ainda mais excludente aos negros do que fora o Império escravagista, se refugiou no apogeu da contestação ao apartheid velado que fez vervilharem mágoas da Guerra Civil, retornou ao Brasil, ao lado de Brizola se fez deputado e senador e, nos últimos dez anos de vida, perdeu a voz.

E vieram cotas, revistas especializadas - Abdias foi um dos pioneiros da imprensa negra no país, com a sua Voz da Raça, uma publicação da Frente Negra Brasileira, ainda nos anos 1930 - um canal de televisão afro-brasileiro - a efêmera TV da Gente, de Netinho de Paula - a internet, Benedita da Silva, Paulo Paim Filho, Ivani dos Santos, Jurema Batista, Carlos Alberto Caó, Gilberto Palmares e tantos outros.

E não ouvimos Abdias. Uma das minhas maiores mágoas no jornalismo foi, a exemplo destes todos, não ter tido tempo de dar voz a este grande brasileiro que nos deixou há uma semana. Produzi, certa vez, um bonito especial sobre o Teatro Experimental do Negro, iniciativa do tribuno e que reuniu astros do quilate de Haroldo Costa, Léa Garcia, Solano Trindade, Ruth de Souza e Cléa Simões, todos nomes imortais. Perguntei ao querido Haroldo sobre Abdias, e ele - bem humorado - respondeu: "Não está dançando frevo, mas vai bem". Haroldo, que ainda dança frevo e tem voz garantida todos os carnavais em defesa da cultura afro-brasileira, reverenciou o mestre até seus últimos dias.

Mas onde estiveram setores do movimento negro, que tanto renegam seus pioneiros não alimentados no seio do marxismo, nos últimos dez anos, em que seu maior líder não teve a palavra? Abdias do Nascimento, lúcido até o fim, deixou legado e realizações. Imortal em seus jornais, revistas e peças de teatro, foi um rasgo de dignidade nas pútridas tribunas do Senado Federal dos anos 90, quando conviveu com uma série de processos de cassação de mandato de seus colegas de legislatura. Que o movimento negro, cada vez mais afro e menos brasileiro, ponha os pés no chão e não deixe morrer este libelo contra a segregação.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Pretérito Perfeito

Se o passado cantasse, valsa em dó repetiria. Intrépida pequena fagueira, espia atrás da porta e toca o tabaco com o som dos saltos. Em sobressalto, aponta o indicador aos céus e professa: o amor bem-vindo é o mais puro, terno e perdido. Mareja os dois cristais, borra o rosto com duas marcas de tinta preta, baixa a cabeça, pensa na morte. Mas, que sorte! Ter em companhia a mão amiga, tão achada e tão perdida, é dor de amor e fortuna em vida. É bálsamo, néctar e ambrosia. É forte, intrépido e temerário. Quem morre de amor não teme a morte, a sorte ou o bote das dores. Quem morre de amor é uno, uníssono em voz, alma e sonho a fazer planos para o almoço de amanhã e para o café de cinquenta anos adiante. É sonhar em velhos, anos a frente, vidas tocadas, a acariciar netos e bisnetos. É ver a vida florescer de nossos planos, enganos e danos, todos nossos em vitórias e tropeços, tão nossos quanto os nomes e dedos. Somos, pequena, a dose certa das nossas pequenas glórias e batalhas perdidas. Somos a guerra em nome do amor, a luta inglória contra um mundo de desamor e desapego. Vivemos de bom grado com que a vida nos reservou: ao menos um bom ombro para chorar as nossas mágoas e uma boa testa para compartilhar olhares e ilusões, ávidos por um futuro laureado e saudosos de nossos melhores momentos: sempre os nossos últimos reencontros. A cada dia mais certo de um amor certeiro, digo ao povo que acertei no milhar. Encontrei na mão mais amiga o mais puro caminhar, ao lado de quem acredita, ama e espera. E caminharemos, mesmo quando os pés não caminharem mais.

terça-feira, 10 de maio de 2011

"Doença Crônica": Trinta anos depois, um triste estigma


Jorge Arruda foi um dos maiores militantes da causa negra no Brasil. Negro e homossexual assumido, um dia quis me transformar em "Lucas do PT". Pela rejeição às siglas tradicionais que mantenho desde o início de minha trajetória, agradeci e recusei a proposta. Apesar disso, o trabalho do Arruda a frente da ONG A.F.R.I.C.A, do bairro de Campo Grande, sempre me encantou. Lá, ele mantinha enorme cuidado com as crianças em situação de risco, com a preservação da cultura negra e das religiões afro-brasileiras.

Tempos depois da proposta, já na Rádio MEC, produzia uma edição do debate Atualidades e resolvi convidá-lo. Era Dia da Consciência Negra. Para aquele especial, eu queria reunir grandes negros brasileiros: Zezé Motta, Haroldo Costa, Joel Rufino dos Santos, fazer uma grande homenagem ao nosso Abdias do Nascimento e trazer a palavra contundente do líder Jorge Arruda, grande companheiro de todos eles em tantos anos em prol da igualdade étnica. Liguei para o Arruda e foi a vez dele recusar um convite meu. Agradeceu, mas disse estar muito doente. Desconfiado, soube do que havia acontecido: meu amigo Arruda, que morreu dias depois, era mais um número nas estatísticas da AIDS no Brasil.

Doença de notificação obrigatória ao Ministério da Saúde, cresce em índices ano a ano e todas as medidas, quase todas acertadas, adotadas pelo governo brasileiro têm se mostrado insuficientes para conter a epidemia. Para vocês terem idéia, hoje há no Brasil aproximadamente 600 mil soropositivos. Nem todos eles já desenvolveram os sintomas, mas tiveram seus casos diagnosticados e notificados. Há ainda um número impreciso de subnotificações. O Ministério da Saúde fala em 250 mil, mas instituições internacionais apontam para 600 mil, o que dobraria os índices atuais e nos levariam a espantosos 1 milhão e 200 mil portadores do vírus HIV em nosso país.

Em 2009, desenvolvendo uma oficina de comunicação para alunos de uma tradicional escola de formação de professores aqui do Rio, recebemos Antônio Pinheiro, ativista do movimento LGBT e professor da rede estadual de educação. Pinheiro nos presenteou com um relatório oficial do Ministério da Saúde, distribuído às entidades que cuidam de temas relacionados à sexualidade humana, sobre a AIDS e as demais doenças sexualmente transmissíveis no Brasil. Lemos o conteúdo dos calhamaços atentamente, e pudemos observar uma realidade alarmante: subnotificação, acesso reduzido ao coquetel nas regiões Norte e Nordeste, alto percentual de abandono do tratamento e a definitiva extinção do conceito de Grupos de Risco. Hoje, há de se falar em Comportamentos de Risco, essencialmente o que se acostumou chamar por promiscuidade. É grande o contágio entre as meninas e mulheres jovens, muitas menores de idade, que se relacionam sem o uso do preservativo e parecem não se preocupar com as conseqüências desta ação. Tudo isto aponta para a degradação moral e o descaso.

Há também as barebackings, festas que são um verdadeiro atentado à saúde pública e que são realizadas em residências de alto luxo na Vieira Souto, Farme de Amoedo e Avenida Atlântica. Lá, o sexo é praticado sem o uso de preservativos e com a presença declarada de soropositivos. Todos sabem que há portadores do HIV ali, mas sentem prazer ao não saberem quem são: trata-se de uma grande roleta-russa, em que o bacanal dionisíaco é substituído pela adrenalina de se colocar em risco a própria vida.

A ausência de ações do poder público contra estas festas, poucas vezes denunciadas na imprensa e freqüentadas tanto por casais heterossexuais como por parceiros homossexuais, leva à proliferação do vírus HIV entre jovens saudáveis e produtivos, todos entregues à imbecilidade e à perversão moral nestes eventos. A morte de Marco Aurélio Silva da Rosa - o Lacraia - em mais uma presumível infecção pelo HIV, escarnece a precariedade do nosso sistema de saúde, que oferece o coquetel a um grande número de portadores mas não lhes dá acompanhamento adequado. O Hospital Gafrée Guinle, centro de referência no tratamento da AIDS no Brasil, tem pouco mais de 300 leitos. Se não dá conta dos soropositivos da Tijuca e arredores, como imaginar que atenderá a todos os casos em que sua ação se fizer necessária? Quantos Lacraias e Arrudas mais teremos que perder para que a sociedade desperte e veja no abandono do SUS e na promiscuidade de seu comportamento sexual a verdadeira razão para tanto sofrimento?