terça-feira, 10 de maio de 2011

"Doença Crônica": Trinta anos depois, um triste estigma


Jorge Arruda foi um dos maiores militantes da causa negra no Brasil. Negro e homossexual assumido, um dia quis me transformar em "Lucas do PT". Pela rejeição às siglas tradicionais que mantenho desde o início de minha trajetória, agradeci e recusei a proposta. Apesar disso, o trabalho do Arruda a frente da ONG A.F.R.I.C.A, do bairro de Campo Grande, sempre me encantou. Lá, ele mantinha enorme cuidado com as crianças em situação de risco, com a preservação da cultura negra e das religiões afro-brasileiras.

Tempos depois da proposta, já na Rádio MEC, produzia uma edição do debate Atualidades e resolvi convidá-lo. Era Dia da Consciência Negra. Para aquele especial, eu queria reunir grandes negros brasileiros: Zezé Motta, Haroldo Costa, Joel Rufino dos Santos, fazer uma grande homenagem ao nosso Abdias do Nascimento e trazer a palavra contundente do líder Jorge Arruda, grande companheiro de todos eles em tantos anos em prol da igualdade étnica. Liguei para o Arruda e foi a vez dele recusar um convite meu. Agradeceu, mas disse estar muito doente. Desconfiado, soube do que havia acontecido: meu amigo Arruda, que morreu dias depois, era mais um número nas estatísticas da AIDS no Brasil.

Doença de notificação obrigatória ao Ministério da Saúde, cresce em índices ano a ano e todas as medidas, quase todas acertadas, adotadas pelo governo brasileiro têm se mostrado insuficientes para conter a epidemia. Para vocês terem idéia, hoje há no Brasil aproximadamente 600 mil soropositivos. Nem todos eles já desenvolveram os sintomas, mas tiveram seus casos diagnosticados e notificados. Há ainda um número impreciso de subnotificações. O Ministério da Saúde fala em 250 mil, mas instituições internacionais apontam para 600 mil, o que dobraria os índices atuais e nos levariam a espantosos 1 milhão e 200 mil portadores do vírus HIV em nosso país.

Em 2009, desenvolvendo uma oficina de comunicação para alunos de uma tradicional escola de formação de professores aqui do Rio, recebemos Antônio Pinheiro, ativista do movimento LGBT e professor da rede estadual de educação. Pinheiro nos presenteou com um relatório oficial do Ministério da Saúde, distribuído às entidades que cuidam de temas relacionados à sexualidade humana, sobre a AIDS e as demais doenças sexualmente transmissíveis no Brasil. Lemos o conteúdo dos calhamaços atentamente, e pudemos observar uma realidade alarmante: subnotificação, acesso reduzido ao coquetel nas regiões Norte e Nordeste, alto percentual de abandono do tratamento e a definitiva extinção do conceito de Grupos de Risco. Hoje, há de se falar em Comportamentos de Risco, essencialmente o que se acostumou chamar por promiscuidade. É grande o contágio entre as meninas e mulheres jovens, muitas menores de idade, que se relacionam sem o uso do preservativo e parecem não se preocupar com as conseqüências desta ação. Tudo isto aponta para a degradação moral e o descaso.

Há também as barebackings, festas que são um verdadeiro atentado à saúde pública e que são realizadas em residências de alto luxo na Vieira Souto, Farme de Amoedo e Avenida Atlântica. Lá, o sexo é praticado sem o uso de preservativos e com a presença declarada de soropositivos. Todos sabem que há portadores do HIV ali, mas sentem prazer ao não saberem quem são: trata-se de uma grande roleta-russa, em que o bacanal dionisíaco é substituído pela adrenalina de se colocar em risco a própria vida.

A ausência de ações do poder público contra estas festas, poucas vezes denunciadas na imprensa e freqüentadas tanto por casais heterossexuais como por parceiros homossexuais, leva à proliferação do vírus HIV entre jovens saudáveis e produtivos, todos entregues à imbecilidade e à perversão moral nestes eventos. A morte de Marco Aurélio Silva da Rosa - o Lacraia - em mais uma presumível infecção pelo HIV, escarnece a precariedade do nosso sistema de saúde, que oferece o coquetel a um grande número de portadores mas não lhes dá acompanhamento adequado. O Hospital Gafrée Guinle, centro de referência no tratamento da AIDS no Brasil, tem pouco mais de 300 leitos. Se não dá conta dos soropositivos da Tijuca e arredores, como imaginar que atenderá a todos os casos em que sua ação se fizer necessária? Quantos Lacraias e Arrudas mais teremos que perder para que a sociedade desperte e veja no abandono do SUS e na promiscuidade de seu comportamento sexual a verdadeira razão para tanto sofrimento?

2 comentários:

Blog do Mario disse...

Triste situação, não me espantarei de estivermos chegando aos índices africanos de HIV. O combate precisa ser em duas vias, a primeira, através de medidas fortes e eficientes por parte do Ministério da Saúde e do Estado. Se as medidas atuais mostram claramente que há deficiência, tem que ser repensadas e modificadas o quanto antes. A questão também é que, por melhor que seja uma ação por parte do Estado na prevenção e tratamento dos portadores do HIV, a estrutura precária da saúde pública brasileira colocaria tudo os esforços abaixo. Portanto, não só se faz necessária um novo modelo público de prevenção e tratamento , como também uma urgente reestruturação dos hospitais e postos de saúde no Brasil.
A segunda via é a consciência moral. As pessoas tem que ter consciência de que elas também tem responsabilidade pelo que fazem em suas vidas sexuais. O comportamento promíscuo tem que ser evitado !! não adianta um país ter a melhor rede de saúde do mundo, se seus cidadãos não tem consciência moral acerca de suas responsabilidades.

Abraços,

Mario

Flor Baez disse...

Lucas, belissímo seu texto. Você escreve muito bem!

Realmente, é muito triste esse duplo descaso com a saúde pública tanto pelo indivíduo como o governo.

A responsabilidade é de todos, pois as partes, sozinhas, não realizam nenhuma transformação.

Bjs