Foto: Marc Ferrez |
Todas as manhãs de
chuva em Botafogo, quando a mãe medrosa imaginava um filho-de-açúcar e o
mantinha sob as cobertas enquanto seus vinte e cinco coleguinhas empunhavam
lancheira e mochila e iam para a aula, o menino emburrava e, ocioso,
dedicava-se a escutar um som vindo de longe, distinto de todos os que já havia
ouvido na televisão, no rádio ou nas fitas cassete que seu avô gravara em
Marajó com os cantos dos pássaros. D. Antônia, a fiel babá, filha de escravos,
lhe explicara: era o som do amolador de facas. O pai dela, liberto pela Lei
Áurea, se instruiu no ofício e, de peixeira na mão e carapinha engomada, serviu
de modelo para uma das famosas fotos de Marc Ferrez sobre o dia-a-dia dos
trabalhadores da cidade. O assovio que entoava hinos de times de futebol e das
forças armadas lhe invadia os ouvidos e clamava, solene, pela velha mania dos
perguntadores: que que eu vou ser quando crescer?
Eis que o menino,
gordo, botafoguense e de olhos pretos respondeu com “sustança”: amolador de
facas. Sim! O homem que afia a faca e assovia ao mesmo tempo! E assovia tão
alto que mais parece metal do que carne. E todas as manhãs, de chuva ou de sol,
o garoto procurava o amolador pelas ladeiras do velho bairro de Rui Barbosa.
Ouvia o som de longe e, quanto mais perto, mais longe ficava. Disseram-lhe que
o homem trabalhava atrás do muro, quase na pedreira. Ora, mas amolador de facas
as amola nas ruas! E, no fim das contas, que lógica há em amolar facas se
podemos nos servir de novas? Amolam-se aquelas que pertenceram aos nossos
bisavós. Das novas, presentes do casamento de seus pais envoltas em um faqueiro
de madeira, não se lembrava de ganharem novo fio. Afinal, que sentido faz
amolar o que se pode trocar com tamanha facilidade?
Como todo menino
acorda antes da mãe só pelo prazer de vê-la acordar, todas as vezes em que a
garganta – que inflamava toda hora – estava em dia, ele se punha a conversar
com a tartaruga sobre o amolador. Ia para a aula com a pancinha cheia de arroz,
feijão e bife-de-panela e, após se apertar pelas ladeiras e pedras portuguesas enquanto
segurava o dedo indicador do pai com uma mão e um picolé de uva com a outra,
iniciava o solene ritual do xixi despudorado e despreocupado de quem está lá
embaixo. Aprendera as primeiras letras por aquele tempo. E escreveu, em uma
folha dessas de controlar a caligrafia, pela qual as irmãs auxiliares da escola
tanto zelavam: “o tempo passa na cabeça da gente como a faca é amolada nas mãos
do amolador”. Foi o seu primeiro verso, composto ao som de uma fita da Fafá de
Belém. E desistiu de molhar as crianças do play, de conhecer de perto o amolador
– seu novo amigo invisível – e de ensinar Jurema a falar. Afinal, logo ela o
deixaria – para sempre – ao se embrenhar em uma mata em Maricá. E o menino,
saudoso de sua tartaruga, se pôs a embalar na cadeira de balanço da bisavó,
manhã após manhã, de sol ou de chuva, em Botafogo ou já no Leme, para onde se
mudaria depois com os pais e seus irmãos bebês. Tornou-se, bem cedo, um
reflexivo.
Vinte anos depois,
quem aprendeu a ler e escrever com quatro continua lendo e escrevendo muito
mal. O aperto, todas as vezes em que chega da rua, permanece o mesmo: agora
devidamente desafogado em um vaso de plantas na área de serviço. D. Antônia foi
contar feijão no céu e as fitas cassete do avô estão em alguma caixa de papelão
por aqui. Ah, o velho foi pra Marajó e nunca mais voltou! E já fazem dez anos.
O amolador de Botafogo viciou em éter e agora perambula despido da cintura para
baixo, apelidado pela sabedoria popular como “Bob”. O picolé de uva não é mais
fabricado, o pai continua a ser puxado pelo dedo indicador e a mãe aprendeu a
acordar antes de seus três filhotes começarem a piar no ninho. A tartaruga? Essa
não voltou mais. Dizem que foi, on foot, de Maricá até Miguel Pereira. Ali, teria
encontrado uma menina mais velha que a aninhou e lhe deu alface, até que
terminasse seus dias entre os dentes de uma chihuahua. Dias antes de partir
dessa para uma melhor, Jurema lhe confidenciou que falava mesmo. E deu a dica: “desce
já daí e vai lá pegar o menino pelo dedo indicador”. Ela não se fez de rogada.
Com o desapego dos que
nunca acertaram, ele descia ladeiras do Rio Comprido com a mochila nas costas –
e agora sem lancheira. Foi então que os dois, já graúdos, foram mágica. Os
pedidos do quelônio foram atendidos ao esfregar de uma lâmpada mágica chamada “bolsa”,
que fez surgir de dentro o texto de um tal Marshall McLuhan que ele tanto
precisava ler. Para ontem. E aí que o menino, de tão feliz, tornou-se de novo
menino sem nunca deixar de ter sido. E se pôs a urinar por entre as grades,
sempre “pela última vez”. Eis que começaram as intempéries: todas as vezes, o
que era descartado como ruim ou gasto era atirado à mesma direção. Empapada
pela desfaçatez de quem – como todos os outros – tem mil defeitos, ela se
lembrou do caminho soprado por Jurema e decidiu se embrenhar pela mata.
Sozinha. E o menino da varanda, nas manhãs de sol com o canto das cigarras ou
nas de chuva com o zumbizar dos mosquitos, se pôs a amolar sozinho a faca do
que viveram, como o último dos amoladores. Realizou seu sonho, mas fez dele tão
seu que agora afia só o que usou, enquanto os outros trocam facas velhas por
facas novas na esquina de casa.