terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Bitola Elétrica

Há fuligem no chão, rato no canto da rua, saco preto sem coleta, chorume e corpo calcinado nas margens da Brasil. O Brasil é uma grande Brasil, é uma grande Bongaba. Há van que voa nas mãos do motorista velho, bigode branco, que dirige com a esquerda e, com a direita, cobra a passagem. Há curva, porta que abre sozinha, passarela da Brasil, ponto no canto da Dutra, percalço, buzina, som que não cessa de cidade que nem cidade é, um incessante loop de barulho e gente estranha que, janela fechada, atravessa de um canto para o outro, ultrapassa o rio Meriti e redescobre o Brasil nos três ou mais pulos que os quebra-molas, onipresentes, rendem às dores de coluna e às batidas com o queixo no banco da frente.

Há gente parada no bar, arara vendida na feira, mesas e bancos de ferro pintado de amarelo, com uma mão ruim e enrugada de tinta, há rua sem asfalto, terra sem rua, criança empinando pipa, cerol, moto que voa e traqueja, há gente que só quer chegar mais cedo e não quer sair mais tarde. Duas horas para ir, duas horas pra voltar.

Há centenas e centenas de dias e noites minhas, aqui com o pensamento lá ou na mesma cama, na mesma sala, na mesma escada e na parede sem pintura, o interfone, a chave atirada pela janela, os beijos, o som que não cessa de quem quer e não esconde, o abrigo que dá ao meu peito e ao meu sonho, serelepe, de ser por um instante quem sempre quis ser: rei de mim mesmo, senhor de meus amores e vontades.

Há ela, que abraça com força e me pede meu colo, que fala da dor e do ontem, da morte dos outros e da vida que ela fez abrigar, aí sim, diuturnamente em seu peito sem medida um grande amor com o qual não posso concorrer. Há gritaria lá fora, fogos e tiros, há gente de tudo que é canto e de tudo que é jeito de reparar no meu passo desengonçado nos paralelepípedos que me levam até lá. Mas há bom prêmio no final, voz rouca que anuncia sempre o que quero ouvir e que desperta, sem imaginar, um pouco do sonho que matei de morte matada, com corda no pescoço, tantas vezes quando preferi pegar o trem e ir atrás de um grande amor. Para nossa sorte, mudei de ramal.

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