domingo, 16 de maio de 2010

Canto Mudo

Me faz pingar cada caldo de meus olhos nas letras azuis de suas linhas corridas. Velho caderno, pequena. Mesmas palavras de sempre, de apreço e juras eternas, convivem com raivas contidas e mortes silenciosas que duram um ou dois segundos para serem sobrepostas pelo renascimento. Mares bravios, céus tempestuosos, terras trêmulas. Carnes fracas. Atravessa comigo cada tormenta minha e cada trovoada sua. Ao mesmo barco, almas nuas, dedicaremos cada enjôo em alto mar. Viaja comigo aos gélidos trópicos, encanta as gaivotas do azul e as cobras da terra firme. Pede comigo ao mágico da eternidade a prece por todos os nossos, e espera em camarote a minha procura todas as noites. Puxa o meu pé. Seja fantasma a rondar meus rodeios, seja sombra a cada passo em falso, seja meu guarda-chuva e meu guarda-sol. Seja meu beijo de boa-noite. Viva a cada dia de minhas juras, renove-as, faça-as suas. Cumpra-as. Morra minha companheira, e me acompanhe até além. Atravesse as portas comigo. Marque um passeio na esquina do interminável, na noite estrelada que embeleza até a velha e suja praça do Rio Comprido onde o amor se fez presente.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Saudade à Manivela

Tanto tempo faz que o tempo não nos vê que até que dá saudade de te ver. Saudade do cordão, colombina! Ensaboa os cravos com esfoliante, espalha bem o creme hidratante, pinta a cara e pinta a boca, pinta os olhos de azul. Põe as lentes, os cílios postiços, o pompom na cabeça e vai pra rua brincar ao som da marcha-rancho. Não me leve a mal. Aqui ou em Madagascar, somos duas vozes na folia, somos quatro pés de carnaval. Plantamos raízes de pés de alface nos canteiros de obras, bebemos água do poço e caçamos rãs no quintal. Do poder da tristeza, fomos cassados. Somos tal qual duas vozes em uníssono, que entre espirros e cochichos cantam a mesma poesia doce dos apaixonados: a bela construção que, carnavais a carnavais, atravessam quartos de século, se aprofundam e se embelezam a cada nova fantasia.

domingo, 9 de maio de 2010

Como Num Traçado

Vejo tua alma exposta às carnes num painel de beijos dadivosos. Atirada à cova dos leões, brada aos céus contra a morte, a triste vida e a própria sorte a qual foi aprisionada ao nascer e ser posta ali. Era filha de maus pais, e muito mais, era filha de ninguém, era filha de um alguém que nunca soube lhe amar. Era Catarina a doce purga dos pecados por eles deixados muito antes dali, imersos na lama ressecada dos catadores de caranguejos. Catarina catou lixo, vendeu papelão e quinquilharia, pôs o burro no lombo e foi burro-sem-rabo. Amassou o diabo no pão e comeu tal sanduíche, escavou terrenos baldios, procurou a velha pedra verde do avô. Catarina foi mito e foi lenda, foi Afrodite nas terras brasileiras, foi peso e papel na pena dos que dela tiveram. E a tiveram. Muitas vezes, muitos homens a amaram. E não se acabrunharam. Catarina foi dó de todas as almas, envolta aos lençóis brancos dos motéis. De cheirosos, tais lençóis só têm o cheiro. Foi janela aberta no Palácio do Rei, mãos segurando o tampo da mesa enquanto os pés, bem branquinhos, escoravam-se em suas pontas. Menina perdeu-se solenemente na selva urbi, sem outras mãos ou beijos, dedos ou anéis que lhe emergissem. Banheiras de hidromassagem, cadeiras eróticas, saunas a vapor depois, Catarina foi princesa no mundo das noites: mariposa, pousou e posou muitas vezes para quem lhe viesse. É, Catarina... atire a primeira pedra!

sábado, 1 de maio de 2010

Música de Concerto

Pinga-chuva... pinga-fogo, guarda-chuva! Pinga pensamento de gato pingado sobre os bons valores da eternidade. Pinga jeito de princesa, pinga-fera, pinga mar. Pinga até pinga da boa, pinga-chuva, pinga amar. Cai do céu festim de festa, pinga a vista, vá chorar... pinga o tempo, pinga a hora, há de o tempo terminar. Pinga pêra, pinga amora, pinga flor do teu cocar. Pinga-chuva, chove tudo, canivete e tosse de vaca, pinga a morte, pinga a vida, pinga até feliz cantar. Pinga às quintas, esperadas, pinga pr'eu te ver passar. Pinga o resto da semana cá em minh'alma, pinga azar!