quinta-feira, 31 de dezembro de 2009
Quanto Tempo Tem?
Quanto tempo tem que a brisa mórbida que acariciava a lápide de mármore testemunhou meu pranto em desespero? Quanto tempo tem que o desmaio adveio do desvelo e desnivelou todos os níveis de gliose? Quanto tempo tem que o guarda-chuva cor-de-rosa assistiu ao encontro solene de duas almas na tempestade? Tem todo o tempo, tem tempo todo. Tem infinidade de segundos, centésimos e milésimos, que juntos preenchem qualquer garrafa d'água ou conteiner. Tem milhões de leds, bilhões de pixels e trilhões de átomos. Tem viradas, desvios e lágrimas. Tem tempo que não passou, tem tempo que foi-se embora. Tem até tempo com quem já morreu. Quanto tempo tem que meu corpo pulsa à mesma voz, e ouve como música o chamado ao abraço? Quanto tempo tem que os lábios cálidos mordiscam e sinalizam, num sorriso, a satisfação com mais um dia? Quanto tempo tem que a esperança tornou-se companheira inseparável de dois andarilhos que, juntos, caminham a passos largos em direção a um novo tempo? Um tempo de paz e solidão a dois. De calmaria, ardor e singeleza. Um tempo com todo o tempo do mundo, de uníssono-convívio-sem-pudores. Tempo bom será!
sábado, 26 de dezembro de 2009
Prrrroposta
Sinto um olhar tão distante, inchado e avermelhado pelas lágrimas caídas da noite de luar. Longe daqui, sob a névoa da serra, encolhida entre os travesseiros pensa sorrateira no que não fazer amanhã. Sinto um respirar ofegante, talvez prejudicado pela poeira de um quarto há muito trancado. Balança a cabeça, para frente e para trás, em delicados movimentos de dúvida. Boceja, esfrega os olhos. Dois olhos castanhos, solenes. Olhos castanhos têm a beleza da simplicidade, a espontaneidade de se ter o que quase todos têm. Esqueceu longe dali um leque, um cartão de crédito e um pacote colorido. Dentro dele, um pão-de-mel. Sinto um sussurrar indiscreto, como se cantarolasse alguma canção de Roberto Carlos ou Reginaldo Rossi. Canção que fala sobre os esquecidos que jamais esqueceremos. Conversa, delicada, com a gambá que ali fez ninho e que caminha pelo forro do teto acompanhada por três ou quatro filhotes, todos ainda de peito. Arruma o baby doll. Levanta um pouco, vai até a janela e põe-se a fitar o céu estrelado da serra que, longe da poluição da metrópole, abençoa aqueles vinte ou trinta mil refugiados. Talvez, próximos do anno bom, uns poucos mais. Está sozinha, a duas horas de sua outra mão, seu outro pé e, pasmem, seu outro coração. Está perdida nas amarras do sossego, longe de todos os outros, perto de todos os seus. Está saudosa do amor, amado amante, que lhe aperta a mão, morde a orelha e bafeja, assanhado, em pescoço moreno. Está a madrugar seus sonhos, de um ano bem melhor aonde, enfim, possam ter definições e propostas formais de eternidade. Trocarão alianças, beberão no mesmo copo, juntarão os seus panos e sonharão, a estas horas, com suas cabeças coladas no mesmo travesseiro. Sonharão, quem sabe, o mesmo sonho: caras de criança, dois amores, um casal.
sábado, 12 de dezembro de 2009
Pra Seu Remédio
Pra ser sincero, quero que todos os asfaltos e pedras portuguesas por onde nossos pés passarem nos levem a dois ou três quilômetros daqui. Longe, nos abraços cálidos desembaraçaremos todos os nós. Desataremos nós de cadarços, aprenderemos nós-de-marinheiro e seremos, nós dois, mais ágeis e habilidosos. Bem longe daqui, capinaremos, cuidaremos da horta, cortaremos as palmas e criaremos cactus. Hábitos distantes. Lá do outro lado, desceremos a ladeira no temporal, beijaremos a chuva e tomaremos banho de lama. Passaremos frio, fome, calor e dormiremos noites mal dormidas. Observaremos com prazer o gargalhar das hienas, o bater de asas dos abutres e os rugidos dos leopardos. Estaremos do outro lado do mundo! Bem longe, com fome ou frio, será o nosso lar. Ou bem perto, talvez. Quem sabe, aqui na esquina. Quem sabe aqui, talvez.
quinta-feira, 3 de dezembro de 2009
Uma Rosa com Amor
Intrépidas turbas insanas: tremei ao ressoar dos clarins que anunciam o efêmero prazer de ser eterno. Olhai os lírios bregas sob as cores tropicálias e os olhos guaranis. Senti o minuano criar franja em seus cabelos castanhos, o gelado minuano dos pampas que não vi. Amai com sofreguidão cada letra, sílaba, palavra ou frase com o mesmo ardor dos discursos em plenário. Amai, na imensidão, cada gota de mar ou de chuva que reflita nossos momentos e encantos. Assim, minuciosamente, será possível reconstruir com precisão cirúrgica cada dado, som, imagem, cheiro ou textura que por nosso amor já passou ou há de passar.
segunda-feira, 23 de novembro de 2009
Oração aos Eleitores Indecisos
Serás minha voz quando meu peito calar. Contarás minhas histórias, declamarás os meus versos, cantarás minhas canções preferidas e falarás a meus filhos e netos sobre tudo o que não consegui fazer. Serás os meus olhos quando os meus se cerrarem: verás por mim toda a beleza de um nascer do sol no Arpoador, todos os inventos que surgirem e, com espanto, o inevitável florescer de duas ou três gerações adiante que vierem de nós dois. No dia em que minhas mãos não mais lhe tocarem, prometa por mim aprender o piano, a flauta ou o violão. E ainda que teus dedos não mais firmes estejam para experimentarem o sabor das notas musicais, o que de novo eles acariciarem o farão por mim também. Prometa fazer cafuné e catar piolhos das cabeças de meus netos como uma boa avó faria. Quando meus pés não mais me trouxerem ao chão, caminhe todas as maratonas que conseguir. Suba todas as trilhas que não conhecemos com meus pés, ainda que seus oitenta anos a impeçam de terminar o percurso sem sentir o peso dos seus. Prometa nadar como sempre nadou, bailar como sempre bailou e até andar de bicicleta - coisas que nunca consegui fazer! Por favor, faça-as por mim. Quando minhas letras se apagarem, forem molhadas de lágrimas ou queimadas na fogueira, não se faça de rogada: relembre-as com o carinho de quem as fez, pois não há retrato sem musa nem busto de praça sem homenageado. Encare cada letra minha como a declaração universal do maior amor do mundo, como o contrato assinado de eterno amor aos nossos sonhos e planos. E, ainda que nada mais dê certo, lembre-se que ali, naquela praça, desejamos juntos a eternidade sob um temporal. E quando o temporal passar, seremos de algum jeito mãos dadas quando não mais a tivermos. E nem nossos olhos olharem, vozes falarem, letras contarem, toques tocarem, sabores saborearem ou cheiros cheirarem. Quando tudo isto se perder, de um lado, do outro ou dos dois ao mesmo tempo, sobrará ao eterno o único sentido que é capaz de entrar para a História: o do amor amar.
quinta-feira, 19 de novembro de 2009
Naum
A rachadura no solo da testa quando sobe não quer mais descer. A sobrancelha mantém levemente levantada a sua ponta direita. O leite escorre suavemente pelo canto esquerdo dos lábios quando bebido sem atenção. A nuvem negra da noite interminável penumbra qualquer gota de orvalho ou raio de sol. É tudo. É nada. É apenas o fim. A calota craniana torna-se discretamente saltada, provocando um pequeno galo no côco. Os dedos são arqueados, sintoma dos mil anos de datilógrafos e digitadores. As unhas, arroxeadas, exibem dez pintas brancas. Uma pinta para cada mentira. As doze pedras estão na mão, e prometem murmurar maledicências até o último suspiro. O RG, parado em algum ponto do estômago, foi dobrado e engolido para facilitar a identificação do cadáver caso o avião venha a cair. Decolou um milhão de vezes por dia. Averso a todas as possibilidades de cura, o pessimista fraqueja as canelas e recita com orgulho as dores que já conquistou. É sempre mais fácil o pior caminho: é adquirido gratuitamente em uma dessas palestras de marketing multi-níveis que prometem mundos e fundos a quem oferecer um mundo e bons fundos. Ele espera o cataclisma solar, a hecatombe lunar, a nababesca orgia do último dia. Visto de perto, só quer mesmo ver o circo pegar fogo. Feliz é quem espera o recomeço a cada esquina, quem brinda às incertezas e aplaude as vitórias de um minuto. Feliz é quem degusta embevecido um hambúrguer de microondas como se fosse a última bolacha do pacote. A última bolacha do pacote é a de limão cremoso, a última bolacha do último pacote. E, ainda que seja a do último homem, sempre há de ser a prova de que alguém pisou, sentiu e amou ali, ainda que tenha pisado, sentido e amado o que já passou. Passou. Obséquio, pessimista: vai ver se eu estou na esquina. E, de preferência, me espere sob uma escada e com um gato preto no colo. Cordiais saudações.
terça-feira, 17 de novembro de 2009
Partideiro Partidário
Acende, candeeiro. Ascende ao sol de janeiro o fogo fátuo da dor. Fogo sabe-se lá de onde, oriundo de um quebranto qualquer em uma encruzilhada de cimento fofo. Por cada passo dado na calçada, formam-se e desaparecem em seguida pés descalços, saltos de mulher e solas de sapato. Nas gravuras listradas e logotipos estrangeiros, figuram impressões curiosas do cotidiano dos transeuntes. Urbanóides, são todos apressados passageiros da solidão pelas estradas solenes da vida. Ativam suas antenas, mesmo em meio a uma apagão. São propostas "antenadas", sempre em busca da inventividade que de inventiva nada tem. São pés nas lamas de março, quando os temporais chegarem. Sempre atolados, no asfalto, no cimento fresco ou na lama. Entretanto, pensando bem, o sonho de muitos "descolados" é afundar os pés na neve!
sexta-feira, 6 de novembro de 2009
Vida Feroz
Cruzou como um raio a eternidade, sereno que esteve da indivisibilidade de seu amor pelo perigo e pela velocidade. Parou sempre nos mesmos pontos, e em todos os outros. Cantarolou os versos melosos de Luis Miguel. Conheceu o mundo. Por oito anos, fez sombra aos amigos no calor do Rio Comprido. Nas tardes de chuva, deu abrigo a todas as meninas bonitas que conhecia. E às feias também. Nas salas de aula, foi o riso, o causo e o dono do celular que tocava. Consolou cotovelos doídos, falou de amor e do medo da morte. Viveu mil namoradas. Comeu Bruna Surfistinha. Foi meu abraço de todo final de período, companhia que agora há de ficar eternamente marcada em meu pensamento. Hugo, o feroz, cruzou a estrada da vida com a velocidade da luz. Entretanto, vivo ficará em nossa lembrança com a serenidade de um beija-flor. Descanse em paz, meu amigo, ouvinte e leitor.
quarta-feira, 28 de outubro de 2009
Antes de Mais Nada
Antes da prosa, o verso
Antes do verso, a prova
Antes da prova, aprova
E prova o mel da dor
Antes do nada, o tudo
Antes do tudo, o resto
Antes do resto, o pobre
Pobre destino que me reserva
Antes da espera, o erro
Antes do erro, o acerto
Antes do acerto, um dedo
Dedo de prosa com jeito, repito
Antes da dose, o gelo
Antes do gelo, a água
Antes da água, o som
Som do silêncio, som sem razão
Antes do sim, o não
Antes do não, o medo
Antes do medo, a prosa
Prosa de quem ama, sorte mentirosa
Antes do verso, a prova
Antes da prova, aprova
E prova o mel da dor
Antes do nada, o tudo
Antes do tudo, o resto
Antes do resto, o pobre
Pobre destino que me reserva
Antes da espera, o erro
Antes do erro, o acerto
Antes do acerto, um dedo
Dedo de prosa com jeito, repito
Antes da dose, o gelo
Antes do gelo, a água
Antes da água, o som
Som do silêncio, som sem razão
Antes do sim, o não
Antes do não, o medo
Antes do medo, a prosa
Prosa de quem ama, sorte mentirosa
domingo, 25 de outubro de 2009
Tensão Pré-Futural
Véspera de prova de vestibular, segundo antes de bater o pênalti, concurso público, primeiro beijo, primeira mão. Primeira página antes de rodar. Leito de morte, lance de sorte, jogo de azar. Entrevista de emprego, primeiro filho, segundo filho, terceiro filho. Ligadura de trompas. Exame de próstata, filho gay, divórcio, viuvez. Nota de falecimento. E-mail não respondido, telefone fora do gancho, celular desligado. Janela fechada. Luz apagada. Por baixo do edredom, a boneca treme com o amanhã atravessado na garganta. A espinha do futuro fechou-lhe a glote. Não consegue soltar o ar, pois os brônquios não a deixam. Entalada de preocupações, mareja o diário de lágrimas e borra a tinta da velha caneta-tinteiro de seu bisavô. Parker. Mesmo modelo com o qual Roosevelt assinava. Tensões pré-futurais sente a boneca, que agarra com sofreguidão suas tranças de estopa e tenta esconder com as mãos seu sorrido pintado de vermelho em formato de lua. Cara de lua-cheia. Roseia as bochechas ao pensar na madrugada, na qual viu, pela primeira vez, a luz do sol surgir com o pudor de quem descobre o outro sexo. Mal saiu da caixa. Quando a noite cai, as bonecas pensam no amanhã com a autoridade de quem não desenvolveu miolos para ter certezas. A cabeça não serve pra isso, boneca. Serve para matutar, planejar e sorver cada gota de vida que seu algodão puder viver. Serve para ver bater o sol em seus cilhos de mentira, para ouvir o som do mar em seus ouvidos sem orelhas. Serve a vida, boneca, para degustar o simplório agridoce das distensões com o solene paladar de um buon gourmet. Serve a vida, boneca, sorva-a, sirva-a, divida. Se assim achar melhor, a distribua. Sirva os seus sonhos como um tablóide de distribuição gratuita. Compartilhe-os com quem a ama e faça-os vívidos após o amanhecer.
sexta-feira, 16 de outubro de 2009
Coração
Perdida por dentro das malhas frias, seus zíperes e paetês, pulsa emérito o músculo roteador. Distribui doses exatas do fluido vital, energizando assim as pontas dos dedos e os fios de cabelo. Torna o peito vivo o anfíbio, gelada criatura de pele lisa. Torna o peito vivo o cão, que acompanha num trote solene os passos de seu dono a afagar-lhe as batatas das pernas. Torna o peito vivo o pensamento humano, que sente, cria e mata. Escapa o homem de sua verdadeira vocação. Ao viver para restringir, absorver e se apoderar, comete ato de traição contra a essência divina de seu próprio funcionamento: o ato de distribuir.
quinta-feira, 15 de outubro de 2009
Lucky Luke
Sonhei certa vez com caixão com detalhes em ouro-de-tolo nos braços de dragões vestidos de azul. Chapéus compridos enfeitados com faixa vermelha, farda pregada de botões brancos. Nos ombros, uma crina de cavalo para cada. Lenços sacudiam no ar, oradores inflamados se levantavam, velhas secavam as lágrimas com os dedos gordinhos, jovens praguejavam contra o inevitável. Sonhei certa vez que, após meu próprio funeral, visitava meu avô em um casarão. Lá, sem que houvesse um só móvel, balançávamos sobre uma cadeira de balanço que não existia e conversávamos sobre a vida e o tempo. Carregavam meu caixão, já durante o reencontro, soldados dos Dragões da Independência. O esquife, de aspecto rústico, parecia ter saído de algum enterro de abolicionista. Patrocínio, Rebouças. Dom Obá, talvez. Era o caixão marrom com dobrões de ouro, receptáculo dos resquícios de quem sangrou gargantas e corações pelo Brasil. Não havia viúva, nem filhos. Nem amigos conhecidos. Nem meus pais, ou qualquer rosto do qual pudesse me recordar. Apenas os braços calmos do velho avô, cálida recepção aos campos do além-túmulo, a acalmar o defunto com a voz suave de quem cantarolava o canto dos pássaros. E voltava mais duas ou três vezes para a multidão inerte, intercalando as frases sábias do ancião com as lágrimas de partida dos que não conheci. Por estas linhas, anos pra cá, servi à alma de tantos que me leram e se acalentaram com a leitura de uma alma. Encaixotado no esquife dos que libertam, perdi-me de qualquer possibilidade de fazer o Brasil virar do avesso tal qual meus sonhos do dia e da noite me mostravam ser possível. Mais duas pernas e dois braços, tornei-me pés rachados da lavoura e mãos suadas de cansaço. Na televisão pebê da sala, vi brasis e angolas. Vi guerras, sangue e dor. Não vi mais a alma dos que enxergam na vida as suas nuances de roteiro cinematográfico. Ao menos, resta-me o brasão de ser autêntico defensor do bloco das autenticidades, do levantar de sobrancelhas que difere um indivíduo do colega ao lado. No frigir dos ovos, fui até bem talentoso. Visto de perto, ao trocar a lupa pelo microscópio, talvez um gênio de mim mesmo. Experto de minhas possibilidades, tudo fiz por minhas realizações. Entrementes, só me restou o cabo da enxada. A foice, o martelo, a chave Phillips. Multinacionalizei a minha dor e a minha decepção. Só minha. Autêntica. Autoral.
domingo, 4 de outubro de 2009
Coisas Que Eu Quis Ser
Subi na biga sem cavalos ao acreditar no passado. Parado no atoleiro, perdi de vista o horizonte e permaneci estático, sob o peso de uma armadura de cobre e ferro que se sobrepunha a uma não menos pesada malha de metal. Com o escudo furado, me escondi dos tiros certeiros de velhas catapultas na carcaça da rústica biga. Com o capacete chamuscado, troquei tapas com a morte e abracei cada suspiro com gestos de delírio. Cavaleiro perdido das trovas inúteis, fui goleiro de várzea contra matador de cinco estrelas. Fiz milagres, catei borboletas. Sobrevivi. Caminhei sobre um fio de nailon, saltei em uma xícara de café e não a quebrei, corri pelo buraco de uma agulha. Fui alfinete em fralda de bebê. Sacerdote de minha insignificância, bradei aos céus meu pobre destino: montado em meus nobres devaneios, sentir o gosto anilado das glórias retumbantes. Ser um farrapo condecorado. Com o pescoço a prêmio, me esquivei da má sorte com a agilidade de um esquilo. Saltei os obstáculos do haras, voei pelas rodas de fogo. Fui herói de mim mesmo. Ao contrariar as contrariedades, me libertei do olhar de paisagem e percebi meu mundo com visão além do alcance. Empunhando a espada do esfarrapado, construí moinhos de vento, castelos de areia e salões para a mendicância. Eu fui rei de mim mesmo. Observei por dentre as almas que por ali passavam, uma só que cândida, observasse o passar do tempo com os olhos castos de quem cantava coisas de amor. Encontrei na alma ao lado, aqui ao lado, o caminhar, o descansar e o porvir. Encontrei a mão amiga, a voz serena e o abraço eufórico dos reencontros. Descobri novas terras, naveguei novos mares e até conheci o ar. Respirei fundo na espera, marejei os olhos por horas, enxuguei as lágrimas mortas e as vivas também. Lavei muitos rostos, beijei muitos pés, afaguei muitos dedos. Fiz muitos bolos de nozes. Aguardei como presságio a chegada da donzela, desfrutei das coisas do mundo e do espirito, amei como ninguém mais amaria ou pensaria em amar. Molhei cartas, músicas, barrigas e fios de cabelo. Praguejei contra o passado. Sob a névoa da serra, jurei amor eterno. Na rede, na cama, no chão ou na poltrona, vivi do amor, pois só o amor me bastava. Vivi por todos os cantos uma única toada. Percebi muitas dores, conheci dissabores, enfrentei outros fins. Dissertei sobre o ontem, o hoje e o amanhã, apostei no milhar e ganhei dois vinténs, fui viver embaixo da ponte. Mas vivi, de fato, o amor na cavalgada. Sereno, casto, perdido, choroso, risonho, rasgado, profano, maldoso, puro, vermelho, rosa, admirável, invejado, estático, movimentado, solitário, acompanhado, sagrado, devasso, ansioso, paciente, interno, esperto, inconseqüente e eterno.
sexta-feira, 2 de outubro de 2009
O Reich de Fried
O Brasil dos negros pintados de branco e o artilheiro dos 2.000 gols
Por Lucas Alvares, com colaboração de Mario Vasconcellos
Houve o tempo em que a cobertura jornalística das partidas de futebol se assemelhava à adotada até hoje por ocasião das edições do Grande Prêmio Brasil de Turfe, no Jockey Club Brasileiro. Quem folhear exemplares das “Revistas Illustradas” do início do século passado, terá a impressão de que o mais popular de todos os esportes era um grande evento social voltado para a grã-finagem que, após um footing pela Lagoa, assistia a uma partida entre Paissandu e Fluminense em um campo de aparência varzeana, porém de griffe.
O que os dândis da Zona Sul não sabiam é que, enquanto a bola rolava no gramado da Rua Guanabara, primeiro campo do Fluminense, o futebol desabrochava nos subúrbios da Central do Brasil. Já em 1895, pouco depois de Charles Miller introduzir o esporte bretão em São Paulo, o também britânico Thomas Donohoe fundou o primeiro time da Fábrica de Tecidos Bangu, embrião do clube oficialmente fundado em 1904. Foi no Bangu, ao mesmo tempo dos matches entre Fluminense, Botafogo, Paissandu e América, os quatro grandes da belle èpoque, que os primeiros negros foram aceitos no elenco principal de um clube carioca. No ano seguinte à sua inauguração oficial, o alvirrubro da Zona Oeste escalou Francisco Carregal, um tecelão da fábrica e notadamente mulato, como titular de sua equipe em uma partida contra o Fluminense, realizada no dia 14 de maio de 1905.
Enquanto o negro Carregal vestia as cores banguenses, um outro negro – Benjamin de Oliveira – fazia sucesso com o primeiro clown do teatro brasileiro, o Beijo. Benjamin, um mineiro de Pará de Minas, era admirado desde o fim do Segundo Reinado por suas interpretações apaixonadas de clássicos do teatro universal, como “Otelo”. O palhaço, negro de poucas misturas, pintava o rosto de branco mesmo nas interpretações mais sóbrias, nas quais os trajes de palhaço era desnecessários. Nilo Peçanha, governador do extinto estado do Rio de Janeiro entre 1903 e 1906 e, posteriormente, Presidente da República entre 1909 e 1910, morreu em negativas do óbvio: era mulato. O “Pobre Mulato”, como a ele se referiam seus opositores, se opôs às oligarquias galicistas que até então governavam estados e a União, terminou seus dias como candidato derrotado à presidência e alvo dos maiores impropérios por parte dos setores conservadores da população.
Carregal, Benjamin e Nilo são três personagens de um país no qual apenas 20% da população era alfabetizada, e aonde a consciência que faria brotar a luta pelos direitos civis dos afro-descendentes não passava do campo do discurso de um pequeno grupo de intelectuais. A grosso modo, as decisões sobre a vida e a morte no Brasil continuavam a ser tomadas nos salões dos clubes sediados na Rua do Ouvidor e nas confeitarias do centro da cidade. Em comum, estes três heróis tiveram o destino: páginas de livros, nomes de ruas e fotografias de arquivo. A nenhum deles se deve a mudança do curso da história o quanto se deve a Artur Friedenreich.
Autor de mais de 2.000 gols, segundo relato do folclórico jornalista paulistano Adriano Neiva da Motta e Silva, o De Vaney, Artur Friedenreich – filho de comerciante alemão com lavadeira negra – trouxe a Seleção Brasileira para o protagonismo do futebol internacional. Em um período em que a mídia se resumia aos jornais de circulação nas capitais e às “Revistas Illustradas”, não menos regionais, Fried – como era conhecido – se tornou o ídolo de uma geração e fez do impopular futebol um pouco menos elitista.
Lenda Urbana
Dono de um chute potente e de uma impressionante facilidade para marcar gols, o artilheiro teria, de acordo com uma lenda urbana propagada nos anos 20, assassinado com uma bolada o próprio irmão durante uma cobrança de pênalti. O jornalista Luiz Mendes, que entrevistou o craque algumas vezes, ouviu a negativa de Fried: “É lenda. Conversei uma vez com o Friedenreich no Maracanã e perguntei a ele sobre essa história. Ele me respondeu que isso não aconteceu por dois motivos. Primeiro, que ele sempre batia pênaltis de forma colocada, não com força e, segundo, que ele era filho único”, relata Mendes. Posteriormente, esta lenda foi atribuída ao meio-campista Perácio, ídolo do Botafogo nos anos 30 e também famoso por suas “patadas”. Alçado ao posto de personalidade, Friedenreich compunha um tipo incomum aos atletas de seu tempo: bebia nas rodas boêmias, aonde tocava violão e cantava modinhas de sucesso. Como filho de um alemão, e a despeito de sua indisfarçada negritude, circulava por entre a grã-finagem da capital paulista. Com um certo torcer de nariz, seus colegas de high society preferiam vê-lo como um “branco-bem-bronzeado”. Foi também o primeiro craque-itinerante. Atuou, como cigano da bola que foi, por clubes de tradições eurocêntricas: Germânia, Ypiranga, Mackenzie, Payssandu, Flamengo, Paulistano, Atlético Mineiro, São Paulo da Floresta e Santos. Ídolo no Rio, São Paulo e Belo Horizonte, atuou também por 23 vezes com a camisa do Brasil. Herói do título Sul-Americano de 1919 contra o Uruguai, marcou 10 gols em 11 anos de convocações para a Seleção.
Friedenreich Hoje
Friedenreich, à esquerda e Pelé, em evento no final dos anos 50.
Após incríveis 26 anos de carreira, Artur Friedenreich se aposentou na temporada de 1935, no Flamengo. Tinha 43 anos de idade. Viveu mais 34, tempo suficiente para ver brotar as gerações vitoriosas de 1938, 1950, 1958 e 1962. Em 6 de setembro de 1969, véspera do Dia da Independência e enquanto o Brasil disputava as eliminatórias para a Copa de 70, o precursor do futebol-arte cerrou os olhos pela última vez, após anos de luta contra uma arteriosclerose. Apelidado de “El Tigre” pela imprensa sul-americana após o título de 1919, Fried não teve do Brasil as homenagens que merecia. Só muito depois de morto, através das obras de jornalistas especializados na memória do futebol como Celso Unzette, Valmir Storti, André Fontenelle e Roberto Assaf, sua carreira foi redescoberta. Assaf, aliás, afirma que Artur Friedenreich seria craque ainda nos dias de hoje, ao contrário do que afirmam os detratores dos primórdios do futebol: “Na terceira partida, forma apurada, e após um punhado de gols e dribles e passes de efeito, voltaria à Seleção Brasileira. Como o fez num tempo em que também existiam pernas-de-pau. Na minha visão, Fried segue sendo um dos cinco principais jogadores da nossa história, numa linha sucessória, ao lado de Leônidas da Silva, Zizinho, Garrincha e Pelé, por tudo que representaram”, exalta Roberto Assaf. Dentre os cinco nomes citados pelo jornalista, nenhum outro teve uma carreira tão longa quanto a de Friedenreich. Nenhum outro vestiu a camisa de tantos clubes, foi ídolo de tantas torcidas ou, segundo afirmam alguns autores, marcou tantos gols. E, finalmente, nenhum outro saiu do nada para o estrelato. Leônidas, Zizinho, Garrincha e Pelé entraram em campo com o futebol popularizado. Friedenreich, ao contrário, virou o jogo com força de tigre e começou a transformar, com seus dribles e gols, o esporte-bretão em paixão nacional e brazilian scratch na “Seleção Canarinho”.
Por Lucas Alvares, com colaboração de Mario Vasconcellos
Houve o tempo em que a cobertura jornalística das partidas de futebol se assemelhava à adotada até hoje por ocasião das edições do Grande Prêmio Brasil de Turfe, no Jockey Club Brasileiro. Quem folhear exemplares das “Revistas Illustradas” do início do século passado, terá a impressão de que o mais popular de todos os esportes era um grande evento social voltado para a grã-finagem que, após um footing pela Lagoa, assistia a uma partida entre Paissandu e Fluminense em um campo de aparência varzeana, porém de griffe.
O que os dândis da Zona Sul não sabiam é que, enquanto a bola rolava no gramado da Rua Guanabara, primeiro campo do Fluminense, o futebol desabrochava nos subúrbios da Central do Brasil. Já em 1895, pouco depois de Charles Miller introduzir o esporte bretão em São Paulo, o também britânico Thomas Donohoe fundou o primeiro time da Fábrica de Tecidos Bangu, embrião do clube oficialmente fundado em 1904. Foi no Bangu, ao mesmo tempo dos matches entre Fluminense, Botafogo, Paissandu e América, os quatro grandes da belle èpoque, que os primeiros negros foram aceitos no elenco principal de um clube carioca. No ano seguinte à sua inauguração oficial, o alvirrubro da Zona Oeste escalou Francisco Carregal, um tecelão da fábrica e notadamente mulato, como titular de sua equipe em uma partida contra o Fluminense, realizada no dia 14 de maio de 1905.
Enquanto o negro Carregal vestia as cores banguenses, um outro negro – Benjamin de Oliveira – fazia sucesso com o primeiro clown do teatro brasileiro, o Beijo. Benjamin, um mineiro de Pará de Minas, era admirado desde o fim do Segundo Reinado por suas interpretações apaixonadas de clássicos do teatro universal, como “Otelo”. O palhaço, negro de poucas misturas, pintava o rosto de branco mesmo nas interpretações mais sóbrias, nas quais os trajes de palhaço era desnecessários. Nilo Peçanha, governador do extinto estado do Rio de Janeiro entre 1903 e 1906 e, posteriormente, Presidente da República entre 1909 e 1910, morreu em negativas do óbvio: era mulato. O “Pobre Mulato”, como a ele se referiam seus opositores, se opôs às oligarquias galicistas que até então governavam estados e a União, terminou seus dias como candidato derrotado à presidência e alvo dos maiores impropérios por parte dos setores conservadores da população.
Carregal, Benjamin e Nilo são três personagens de um país no qual apenas 20% da população era alfabetizada, e aonde a consciência que faria brotar a luta pelos direitos civis dos afro-descendentes não passava do campo do discurso de um pequeno grupo de intelectuais. A grosso modo, as decisões sobre a vida e a morte no Brasil continuavam a ser tomadas nos salões dos clubes sediados na Rua do Ouvidor e nas confeitarias do centro da cidade. Em comum, estes três heróis tiveram o destino: páginas de livros, nomes de ruas e fotografias de arquivo. A nenhum deles se deve a mudança do curso da história o quanto se deve a Artur Friedenreich.
Autor de mais de 2.000 gols, segundo relato do folclórico jornalista paulistano Adriano Neiva da Motta e Silva, o De Vaney, Artur Friedenreich – filho de comerciante alemão com lavadeira negra – trouxe a Seleção Brasileira para o protagonismo do futebol internacional. Em um período em que a mídia se resumia aos jornais de circulação nas capitais e às “Revistas Illustradas”, não menos regionais, Fried – como era conhecido – se tornou o ídolo de uma geração e fez do impopular futebol um pouco menos elitista.
Lenda Urbana
Dono de um chute potente e de uma impressionante facilidade para marcar gols, o artilheiro teria, de acordo com uma lenda urbana propagada nos anos 20, assassinado com uma bolada o próprio irmão durante uma cobrança de pênalti. O jornalista Luiz Mendes, que entrevistou o craque algumas vezes, ouviu a negativa de Fried: “É lenda. Conversei uma vez com o Friedenreich no Maracanã e perguntei a ele sobre essa história. Ele me respondeu que isso não aconteceu por dois motivos. Primeiro, que ele sempre batia pênaltis de forma colocada, não com força e, segundo, que ele era filho único”, relata Mendes. Posteriormente, esta lenda foi atribuída ao meio-campista Perácio, ídolo do Botafogo nos anos 30 e também famoso por suas “patadas”. Alçado ao posto de personalidade, Friedenreich compunha um tipo incomum aos atletas de seu tempo: bebia nas rodas boêmias, aonde tocava violão e cantava modinhas de sucesso. Como filho de um alemão, e a despeito de sua indisfarçada negritude, circulava por entre a grã-finagem da capital paulista. Com um certo torcer de nariz, seus colegas de high society preferiam vê-lo como um “branco-bem-bronzeado”. Foi também o primeiro craque-itinerante. Atuou, como cigano da bola que foi, por clubes de tradições eurocêntricas: Germânia, Ypiranga, Mackenzie, Payssandu, Flamengo, Paulistano, Atlético Mineiro, São Paulo da Floresta e Santos. Ídolo no Rio, São Paulo e Belo Horizonte, atuou também por 23 vezes com a camisa do Brasil. Herói do título Sul-Americano de 1919 contra o Uruguai, marcou 10 gols em 11 anos de convocações para a Seleção.
Friedenreich Hoje
Friedenreich, à esquerda e Pelé, em evento no final dos anos 50.
Após incríveis 26 anos de carreira, Artur Friedenreich se aposentou na temporada de 1935, no Flamengo. Tinha 43 anos de idade. Viveu mais 34, tempo suficiente para ver brotar as gerações vitoriosas de 1938, 1950, 1958 e 1962. Em 6 de setembro de 1969, véspera do Dia da Independência e enquanto o Brasil disputava as eliminatórias para a Copa de 70, o precursor do futebol-arte cerrou os olhos pela última vez, após anos de luta contra uma arteriosclerose. Apelidado de “El Tigre” pela imprensa sul-americana após o título de 1919, Fried não teve do Brasil as homenagens que merecia. Só muito depois de morto, através das obras de jornalistas especializados na memória do futebol como Celso Unzette, Valmir Storti, André Fontenelle e Roberto Assaf, sua carreira foi redescoberta. Assaf, aliás, afirma que Artur Friedenreich seria craque ainda nos dias de hoje, ao contrário do que afirmam os detratores dos primórdios do futebol: “Na terceira partida, forma apurada, e após um punhado de gols e dribles e passes de efeito, voltaria à Seleção Brasileira. Como o fez num tempo em que também existiam pernas-de-pau. Na minha visão, Fried segue sendo um dos cinco principais jogadores da nossa história, numa linha sucessória, ao lado de Leônidas da Silva, Zizinho, Garrincha e Pelé, por tudo que representaram”, exalta Roberto Assaf. Dentre os cinco nomes citados pelo jornalista, nenhum outro teve uma carreira tão longa quanto a de Friedenreich. Nenhum outro vestiu a camisa de tantos clubes, foi ídolo de tantas torcidas ou, segundo afirmam alguns autores, marcou tantos gols. E, finalmente, nenhum outro saiu do nada para o estrelato. Leônidas, Zizinho, Garrincha e Pelé entraram em campo com o futebol popularizado. Friedenreich, ao contrário, virou o jogo com força de tigre e começou a transformar, com seus dribles e gols, o esporte-bretão em paixão nacional e brazilian scratch na “Seleção Canarinho”.
sábado, 26 de setembro de 2009
Jurei de Pés Juntos
Jurei de pés juntos não esperar mais pelo topo da escada rolante. Ante à visão misteriosa descoberta com a aproximação, optei pela pequena mão que, presa à minha, acompanhava-me expremida no mesmo degrau.
Jurei de pés juntos não entrar sozinho em um elevador, mesmo que ele tenha porta pantográfica. A sensação claustrofóbica de ver o chão se abrir sem uma mão para apertar é vívida para os que temem.
Jurei de pés juntos aprender a rodar a chave sozinho. Mas, sobretudo, jurei ter uma cópia só pra mim. Do outro lado da porta, um prato de miojo com carne moída e um suco de maracujá irão estar à minha espera enquanto o juramento for mantido.
Jurei de pés juntos sempre comprar pipoca para dois. E, quando ela não quiser, comer por ela e por mim. Jurei não salgar muito.
Jurei de pés juntos gastar meus últimos tostões com diversões de duas horas de duração, pois as maiores se tornam tediosas para quem quer fazer tudo ao mesmo tempo.
Jurei de pés juntos me curvar para andar de mãos dadas, sentar para dar beijos e encurtar meus passos para sempre acompanhá-la. Jurei seguir um ritmo que não é meu, pois acompanhar a mão que se dá é saborear cada estalo de falanges.
Jurei de pés juntos ter sempre dois guarda-chuvas na mochila, ou um bem grande no qual se protejam duas pessoas. Nas tardes chuvosas, jurei ser sempre o braço que envolve o tronco para aquecer e cuidar.
Jurei de pés juntos, em sinal de oração, pedir e agradecer todas as noites pelo inexplicável encontro de duas almas em uma praça suja.
Jurei de pés juntos, e repito o juramento, abaixar quantas vezes tiver de abaixar, enxugar quantas lágrimas tiver de enxugar, gastar quanta sola de sapato for necessária e viver enquanto houver vida. Jurei, num momento, que jurava a eternidade. Juro ao eterno o meu contrato: ao lado das mãos companheiras, das risadas escandalosas e dos beijos acalorados.
Jurei de pés juntos não entrar sozinho em um elevador, mesmo que ele tenha porta pantográfica. A sensação claustrofóbica de ver o chão se abrir sem uma mão para apertar é vívida para os que temem.
Jurei de pés juntos aprender a rodar a chave sozinho. Mas, sobretudo, jurei ter uma cópia só pra mim. Do outro lado da porta, um prato de miojo com carne moída e um suco de maracujá irão estar à minha espera enquanto o juramento for mantido.
Jurei de pés juntos sempre comprar pipoca para dois. E, quando ela não quiser, comer por ela e por mim. Jurei não salgar muito.
Jurei de pés juntos gastar meus últimos tostões com diversões de duas horas de duração, pois as maiores se tornam tediosas para quem quer fazer tudo ao mesmo tempo.
Jurei de pés juntos me curvar para andar de mãos dadas, sentar para dar beijos e encurtar meus passos para sempre acompanhá-la. Jurei seguir um ritmo que não é meu, pois acompanhar a mão que se dá é saborear cada estalo de falanges.
Jurei de pés juntos ter sempre dois guarda-chuvas na mochila, ou um bem grande no qual se protejam duas pessoas. Nas tardes chuvosas, jurei ser sempre o braço que envolve o tronco para aquecer e cuidar.
Jurei de pés juntos, em sinal de oração, pedir e agradecer todas as noites pelo inexplicável encontro de duas almas em uma praça suja.
Jurei de pés juntos, e repito o juramento, abaixar quantas vezes tiver de abaixar, enxugar quantas lágrimas tiver de enxugar, gastar quanta sola de sapato for necessária e viver enquanto houver vida. Jurei, num momento, que jurava a eternidade. Juro ao eterno o meu contrato: ao lado das mãos companheiras, das risadas escandalosas e dos beijos acalorados.
quarta-feira, 23 de setembro de 2009
Auto-Retrato
Perdidas nas folhas cáquis de três anos atrás, lembranças enfadonhas borbulham ilusões perdidas. Tal qual colarinho de chope, na superfície da taça ficaram os planos, mulheres e datas. Três anos dali, estaria bem longe daqui. Em um conjugado em Botafogo, vestindo um suéter no frio, comendo frango agridoce e esperando a hora da novela. Foi tudo gerúndio. O futuro falou errado. Falou "pobrema", "nós vemo" e "naicer". Pra alma de cá, o porvir escreveu tal qual Inácio escreveria uma autobiografia em francês. Tudo torto. É preciso tirar dois ou quatro dentes, ou vai apertar. Talvez, dente passe por cima d'outro. Vou abrir mão destes dois ou quatro. Quiçá, de todos. Quero o sorriso banguela das certezas no concreto, mais belo do que o sorriso amarelo das incertezas abstratas. Abstraí. Nas vielas da Lapa, sou dois ou três dias de esperança. No quarto, serei pregado na parede. Serei um quadro velho de quem poderia ser e não foi, uma visão turva de vinte anos atrás. Se o homícidio ortográfico permanecer em meus destinos, esperarei por uma definitiva reforma. No dentista, na aula de português ou no cemitério.
sábado, 19 de setembro de 2009
As Olheiras do Czar
Trancado no cômodo escuro, ouvinte do zumbizar dos ventiladores, fecho as janelas e cubro os véus de meu berço. Nasci mil anos, vivi cem mil. Morri milhões de vezes, e desejei de cada morte o impacto com o asfalto. Bebi das fontes só a espuma e as bolhas. Comi só a pele frita da galinha, senti só a brisa das duas quadras depois da praia. Não como carne branca. Apenas experimentei algumas patinhas de rã durante a infância. Por muito tempo, ouvi LP's de Verdi e Wagner. Prefiro Chopin. Tranco-me no cômodo e ponho-me a ouvir gravações raras, de 1906. Orquestra Imperial de Berlim. Prefiro a de Moscou. Prefiro as olheiras do Czar ao braço morto do Kaiser. E não bebo cerveja, em hipótese alguma. Pratico as poções de Rasputin, fabrico as loções de Arquimedes, aflito leio um pouco de Mahatma Ghandi. Ele era pai da Indira? Coleciono obras de gurus, daqui e dali. Li até Walter Mercado. Landi Sobral, Paulo Coelho, Dalai Lama, Max Geringer. Sou cético a todos eles. Soube, por estes dias, que o Paulo freqüenta a "Casa do Mago", no Humaitá. Desde pequeno, me apavora desde a fachada. Aperto os botões de madeira do velho paletó de meu avô. Fecho-o com cuidado. De tanto botão, é um paletó de madeira. Quer saber? Morri por hoje. Como em um milhão de vezes.
domingo, 6 de setembro de 2009
Macarrão de Mentira
Molho preto e agridoce encarna na pele da pobre vítima: vou te empolar todo durante a madrugada. Refluxo vai, refluxo vem, a verve gástrica do pobre macarrão de mentira põe as manguinhas de fora e faz pedir ajuda médica. Quero regurgitar minha janta improvisada. Instantâneo em três minutos, um dos maiores crimes cometidos contra a Hermenêutica, provoca gases gástricos e incita estranho desejo de me livrar do digestório. Chame o escrivão. É hora de pôr o velho testamento em prática. Batido em uma Olivetti por meu avô, é só trocar a data de nascimento. O nome do avô era o mesmo do neto: Gervásio Carneiro Carvalho, nascido em Santo Amaro da Purificação, Bahia. A vítima do miojo assassino, um jovem judoca de 18 anos que veio ao Rio de Janeiro tentar a sorte como professor de uma academia para crianças. Sem um puto no bolso, pois ganha vinte reais por aula ministrada - umas cinco por semana - divide um conjugado na Avenida Copacabana com mais três amigos - todos nortistas - e janta miojo todas as noites. Nesta, o pedido foi um yakissoba de mentira, embalado em um plástico preto e preparado em três ou quatro minutos no microondas da casa. Gervásio, conhecido pela alcunha de Carneirão junto aos colegas de república, quer cursar Serviço Social. Ouviu de um crupiê de cassino clandestino que quem cumpre esta graduação pode escolher entre o jornalismo e a publicidade. Versado nas letras do ensino fundamental, e pouco mais do que isso, o jovem baiano escreveu o próprio nome com "J" até os doze anos de idade. Santo Amaro, setenta quilômetros da capital e cidade de IDH medíocre, é retrato na parede tal qual Itabira para Drummond. Aqui, em Copacabana, Gervásio é apenas mais um entre os tantos que trabalham de dia para jantar pipoca, trabalham de noite para beber água da bica e dormem nas horas vagas. Sim, dormem. Só assim, e com a necessidade de manter um endereço fixo advinda de tal, os cobradores, concessionárias e a Receita Federal poderão mandar suas contas mensais. E mais vinte reais. Quer saber? O yakissoba de mentira ficou caro. Melhor trocar pelo cachorro do vizinho.
domingo, 30 de agosto de 2009
Pernas Para o Alto
Quero um colete crivado de balas
Quero a traquéia fechada, entala
Quero o bote furado no mar
Quero a tosse pulmão escarrar
Sangue que sangra, abriu a artéria
Sangue que corre, é pai da matéria
Sangue sem rubro, virou isquemia
Sangue perdura a tornar velharia
Rubro, circula por unhas e fios
Energiza a água e o sal
Embebe de açúcar a si mesmo
E traz a receita final:
Um bolo que Conde Vlad adoraria!
Quero a traquéia fechada, entala
Quero o bote furado no mar
Quero a tosse pulmão escarrar
Sangue que sangra, abriu a artéria
Sangue que corre, é pai da matéria
Sangue sem rubro, virou isquemia
Sangue perdura a tornar velharia
Rubro, circula por unhas e fios
Energiza a água e o sal
Embebe de açúcar a si mesmo
E traz a receita final:
Um bolo que Conde Vlad adoraria!
domingo, 16 de agosto de 2009
Na Madrugada
Pérfidos corvos da meia-noite. Atrozes vozes que perdoam o ressoar dos silenciados. Ouçam a voz dos perdidos: madrugueiros madrigais, sólidos como um jequitibá, esperam o barulho que faz o vendaval que bate nas paredes dos prédios. Aqui ao lado, a quadra de saibro encheu de poças d'água. Adoro o cheiro da madrugada. Cheiro de molhado com frio de molhado. Umidade pura. É na madrugada que absorvo as mensagens que minha mente traz e as faço ultrapassar meu metro e setenta através de um teclado preto. Depois da meia-noite, torno-me íntimo do poeta que me guia. É a voz do além, misteriosa conexão com o metafísico e que faz de mim um escritor. É só a voz. A voz da madrugada.
segunda-feira, 10 de agosto de 2009
Preservativo
Ingresso de um show do Belchior em 1986. Entrada para um América x São Paulo do mesmo ano, Maracanã. Fitas de vídeo mofadas, nas quais só um fino rastro de imagens pontilhadas pode ser visto. Uma lata verde antiga de refrigerante, que encontrei certa vez durante uma escavação no quintal do meu avô. As revistas de mulher da minha avó. Corte e costura, prendas e dotes. No que é velho dou os botes. Vivo de colecionar quinquilharias, pedaços de papel, metal e pano daqui e dali. Nos últimos tempos, aderi à moda retrô dos clubes de futebol. Comprei todas. A mais bonita é a do Olaria campeão da Taça de Bronze de 1981. É a camisa 10 do craque Revélis, o "Anjo da Bariri". Vivo de abocanhar inutilidades. Porém, é com amor que assumo a posse de um mimo raro: uma película partida de reportagem da TV Continental, extinta no início dos anos 60. Deve ser a única no Brasil. Coleciono besteiras. Vivo das películas partidas, das camisas do Olaria e das latas enterradas por um cão qualquer. Coleciono borboletas mortas em 1880, jornais rasgados dos anos 40 e livros proibidos do século XVIII. Talvez um bom soneto do Bocage. Gosto das pedras quentes das saunas e de seu cheiro característico. Talvez, só elas, as pedras, me lembrem do presente. Logo as pedras! Tão antigas em sua imobilidade! Cada partícula é irmã mais velha de todas as invenções do mundo! Vivo agora de colecionar pedras. Afinal, antigas por antigas, são elas campeãs. Século que vem, eu prometo! Colecionarei as águas profundas dos oceanos com seus peixes grotescos e luminosos. Quem sabe eu monte um aquário de inutilidades, voltado especialmente para a preservação da memória animal. Será o Museu da Memória Animal. Ali, as tartarugas e papagaios oferecerão depoimentos de valor inquestionável. Que se tombem as pedras, as águas velhas e as tartarugas! Presevação do patrimônio natural já!
quarta-feira, 5 de agosto de 2009
Um Patacão e Quatro Vinténs
Eu aposto o meu posto que o desgosto tá aí. Nas colchas - duas ou três - que te cobrem, só vejo os olhos brancos quando abertos. Que frio, não? Com cinco graus, os cabelos começam a quebrar. Tornam-se dreads naturais. Daí aquela textura interessante do cabelo das siberianas, a qual observo diariamente na juba de minha amiga Elke Maravilha. Nestas horas, o "Rammal de Japery" é quase uma transiberiana. Os sapos e pererecas coaxam pelados no quintal de pedra, loucos por um matinho ou uma toca qualquer. Não há piscina para pular. Talvez, neste frio, até eles temam a água. A cama é de casal, mas o outro lado aí não está. Vira pro lado, vai! Admira o espaço vazio que há entre o corpo e a parede! Ligue a televisão, assista ao R.R Soares em um, dois, três, quatro canais ao mesmo tempo. Males da parabólica. Pensando bem, desligue a TV. Até Francisco Alves, fantasma ilustre da cidade, recolneu-se a um bom edredom feito de nuvem. E ainda me pede pra subir? Miguel Pereira é um pedacinho da Patagônia na serra!
sexta-feira, 31 de julho de 2009
Here and There
When the night arrived there
The little girl thought: "My dear isn't here!"
When my love closed her eyes, I said:
"My dear is there. She is between me and the eternity"
Forever living that hope, I think this now
When my sweetheart was there, I felt too cold
My heart was iced, my head was hot
And my faith was shaken
Back soon, my little girl. Back tonight. Back to my bed.
When You be back, I will use a new blanket: a double blanket
I promise this!
The little girl thought: "My dear isn't here!"
When my love closed her eyes, I said:
"My dear is there. She is between me and the eternity"
Forever living that hope, I think this now
When my sweetheart was there, I felt too cold
My heart was iced, my head was hot
And my faith was shaken
Back soon, my little girl. Back tonight. Back to my bed.
When You be back, I will use a new blanket: a double blanket
I promise this!
terça-feira, 28 de julho de 2009
Seguro Contra a Solidão
Pontos e sinais marrons na pele morena. Cabelo preto molhado, chocolate seco, castanho quando bate o sol. Pequenas mãos, pequenos dedos. Marcas de queimaduras de forno e fogão. Uma abaixo do umbigo, muito engraçada. Queimou fritando hamburguer. A voz engrossou, acavernou com a fumaça da nicotina e do alcatrão. Os pés são de menino, com as unhas quadradas e as bordas dos dedinhos formando uma pequena serra, como os de minha avó. O queixo é engraçado, pois o mesmo desde criança. O pescoço é comprido, simpático. Ela sempre me olha com a cabeça levantada. Ela sempre aperta a minha mão quando sente frio ou medo. Gosto dos quadris e do busto. Prefiro as costas. Seus ombros largos, de nadadora, me fazem repetir com orgulho: "Minha mulher nadou por muitos anos!". Só medalhas de bronze. Pensando bem, só sua irmã as ganhou. Os dentes alinhados pelo uso de aparelho ortodôntico por muitos anos resistiram aos sete de Free mentolado. As histórias são sempre as mesmas. Com outros foi feliz, de outros foi terror. Quase casou. É, quase. Quase dois anos depois, não vou dormir enquanto ela não for. Não atravesso a rua enquanto ela não atravessar. Ando sempre pelo lado da pista, e a cubro com meus casacos de menino. Era esperado. Quase dois anos depois, recebi o primeiro prêmio de minha apólice. "Seguro Contra a Solidão", diz o contrato. Fiz a assinatura em 01/09/2007, quando me via aos quarenta assistindo ao futebol em uma quitinete. Já não me vejo mais. Aos quarenta, seremos três, quatro ou cinco. Quem sabe, uns dez ou doze. E, mais do que isso, seremos dois. E um só.
Galeto, Arroz e Fritas
Enfeita o pavão, gordura velha! Sente o sabor da crosta preta da carne do galináceo. Torraste na brasa. Restaurantes da Cinelândia têm cara de botequins da Avenida Atlântica, com seus pratos de casas de shows voltados para o público que are looking for algo para forrar o bucho enquanto chopes vêm e vão nas madrugadas serenadas do inverno carioca. Lá, dentre garçons retirantes e gerentes que ganham pouco mais do que dez anos atrás, executivos de R$ 2.000 proseiam e planejam a esticada de logo mais em uma daquelas boites que, ironicamente, ficam no centro antigo do Rio. Ora, não faz muito sentido perambular pelo Castelo às duas horas da manhã. Imaginem a horda de pedintes, desabrigados e vagabundos em geral. Há alguma diferença entre descer até o Caçador da Afonso Pena ou pagar RS 2,80 para fazer a mesma coisa a trinta minutos dali? Definitivamente, o carioca precisa repensar seus hábitos noturnos. Sejam razoáveis! Ser notívago longe de casa é perigoso em qualquer época e lugar! Vão comer na esquina!
segunda-feira, 27 de julho de 2009
Cenna Commica
Burlescos pés sobre o tablado, doces passos de sopetão. Ao susto, abrem-se as cortinas e inicia-se a farsa. Na claque, rostos finos de dândis e mademoseilles encobrem os gritos de morte e de dor dos porões da senzala ou do quarto dos criados. Do outro lado da côrte, dormem inauditas crioulas, perfeitas engomadeiras, copeiras, cozinheiras e amas-secas. Dão leite em suas têtas-de-nêga aos filhos do casal de estirpe que freqüenta as bancadas do Theatro Lírico. Pensando bem, já não havia mais senzala. Tratavam-se de criados de casa, mucamas e cativos, todas peças destinadas a fazer da meretriz ao bobo-da-corte ao contento de seus senhores. É ali, nas palmas e gargalhadas despreocupadas dos camarotes e frisas que nasceu a triste sanha em rir de nossa própria desgraça. Enquanto brasileiros, rimos de nossas maiores vergonhas e fazemos pilhéria de indefinições e incorreções que, sobretudo, nos pertencem. Tudo o que está aí, a nós pertence. Desde os oligarcas do século XVI até os líderes sindicais que a modernidade trouxe ao caminho socialista. Há de se dar termo a estes ouvidos surdos e fazer desta comédia um bom ato épico. Com seriedade e compromisso com o próximo, poderemos fazer de nossa peça a apresentação solene de uma nova forma de se atuar no maior palco de todos: o Teatro Social.
quarta-feira, 22 de julho de 2009
Réu Confesso
Doce pedaço de marron-glacê, adoça e aguça o paladar acompanhado por um queijo minas do mês passado. O queijo cheira mal. Espuma a bile em plena madrugada e faz efervescer a fermentação em minhas entranhas. És amido fervilhante. O sabor de mentira do doce de cor indescritível engana a boca do estômago e faz a mente palpitar. Palpita um bom palpite para logo mais. Melhor dia, talvez? Eu prefiro outra vez. Há mais sabor em ter mais dois anos atrás, de surpresa e no susto. Lá, tão velho quanto este pedaço de queijo minas, sentia a esperança enlatada comigo dentro. Lata furada! Quase dois anos depois, me deixou sair!
Dois dias depois, o gosto de fermentação não sai da goela. O sabor de incenso do pedaço de doce-sabão causa cheiro de batata passada no tubo digestório. É hora de digerir a culpa. Oh, pedaço de hospital! Doce sem doce, de batata e sem batata. Da batata, só o cheiro. De doce, só a etiqueta. Não me engane, despiroque. Me faça enlouquecer, vá! Lata furada, que furada! Quase dois anos depois, não me deixa sair!
Amores que de tal só têm a embalagem são mantimentos dos mais básicos nas prateleiras humanas. Fazem parte da cesta-básica tal qual o arroz. Obrigado, dono do armazém. A mim, destinou a melhor das safras. Saberei agradecer a deferência na hora de passar no caixa.
Atenciosamente;
O Doceiro
Dois dias depois, o gosto de fermentação não sai da goela. O sabor de incenso do pedaço de doce-sabão causa cheiro de batata passada no tubo digestório. É hora de digerir a culpa. Oh, pedaço de hospital! Doce sem doce, de batata e sem batata. Da batata, só o cheiro. De doce, só a etiqueta. Não me engane, despiroque. Me faça enlouquecer, vá! Lata furada, que furada! Quase dois anos depois, não me deixa sair!
Amores que de tal só têm a embalagem são mantimentos dos mais básicos nas prateleiras humanas. Fazem parte da cesta-básica tal qual o arroz. Obrigado, dono do armazém. A mim, destinou a melhor das safras. Saberei agradecer a deferência na hora de passar no caixa.
Atenciosamente;
O Doceiro
quinta-feira, 16 de julho de 2009
Moon River
Quero ser do contra quando a sua voz se impuser
Quero ser a mostra de obra rara qualquer
Vide a bula, aviso: há um jeito de ter
E aguardo consonante a perfídia de alguém
Há, talvez, algo de morte em ser
Sem dedos ou cuidados dizer
Que inferno é viver sem perder
Que a morte é ser só sem ficar
O "só" é irmão do "se"
É lá que se encontra o fim
Sós na cama, na maca, no caixão
É só viver solene quando há solidão
Mas sei só, ser só é não ter
Se a mão solene da solidão me prender
Da falta que a mão pequena fará
Na mão um pouco maior a apertar
Não há de ser só a voz ao pé do ouvido
Ou o aperto das falanges dele nas dela
Há de ser o maior de todos os sufocos:
Hei de ter que me virar sem mão dada para atravessar
Quero ser a mostra de obra rara qualquer
Vide a bula, aviso: há um jeito de ter
E aguardo consonante a perfídia de alguém
Há, talvez, algo de morte em ser
Sem dedos ou cuidados dizer
Que inferno é viver sem perder
Que a morte é ser só sem ficar
O "só" é irmão do "se"
É lá que se encontra o fim
Sós na cama, na maca, no caixão
É só viver solene quando há solidão
Mas sei só, ser só é não ter
Se a mão solene da solidão me prender
Da falta que a mão pequena fará
Na mão um pouco maior a apertar
Não há de ser só a voz ao pé do ouvido
Ou o aperto das falanges dele nas dela
Há de ser o maior de todos os sufocos:
Hei de ter que me virar sem mão dada para atravessar
domingo, 12 de julho de 2009
Guia do Estadual da Série B 2009
América... Unido, vencerás?
5 de Abril de 2008. Um ano e três meses atrás, o América era rebaixado para a Série B do Estadual com a combinação de resultados que deu ao Mesquita a chance de permanecer na Série A em 2009. Na última rodada o América foi até Nova Friburgo, e em uma partida marcada pelas polêmicas com a arbitragem, derrotou a equipe da casa por 2x0. Ao mesmo tempo, no Louzadão, o Mesquita vencia o Duque de Caxias por 4x2, em uma partida dramática. Com a queda, saíram o presidente Reginaldo Mathias, o técnico Gaúcho e todos os atletas do elenco, inclusive os oriundos das categorias de base e considerados jóias no grupo rebaixado.
Mais de um ano depois, o panorama parece ter mudado bastante. Romário, confesso torcedor rubro, e Celso Barros, presidente da Unimed, assumiram um grande desafio: o de colocar o América de novo entre os grandes do futebol brasileiro. Para montar a estrutura do novo departamento de futebol, viabilizaram a vinda de modernos equipamentos e promovem a modernização do Centro de Treinamento do clube, na Rodovia Rio-Petrópolis, um importante passo para a formação de jovens talentos no clube, coisa que não acontece há bastante tempo.
O novo diretor de futebol é Ademar Braga, que trabalhou por muitos anos no Corinthians. Ademar, para quem não lembra, chegou a ser treinador do clube por um bom tempo após a demissão de Antônio Lopes, em 2006. Como técnico, foi contratado Clóvis de Oliveira, que já havia trabalhado no clube em 2008 na comissão técnica de Carlos Roberto, e que tem grande experiência com equipes no exterior.
Clóvis montou um grupo jovem, rápido e pontuado por alguns atletas de grande qualidade técnica, dois deles vindos da Série A do Campeonato Brasileiro.
As três principais contratações possibilitadas pela nova patrocinadora foram a do goleiro Roberto, titular do Vasco em muitas ocasiões nas últimas temporadas, o volante Júnior, ex Vasco e Estrela da Amadora e que estava no Barueri e o artilheiro Alexsandro, que veio do Santo André e teve uma passagem decepcionante pelo Botafogo no ano passado, muito aquém do que costumava demonstrar nos tempos de Resende.
Outras contratações de destaque foram Luís Cetin e Léo Itaperuna, emprestados pelo Fluminense, Henrique e Diguinho, pelo Flamengo e o angolano Jackson Garcia, com passagens pela seleção do país e pelo Penafiel, de Portugal.
Dentre as equipes da Série B do Estadual, além de a mais tradicional, a do América é a que dispõe de maior qualidade técnica, peças de reposição e atletas experientes. É a grande favorita a uma das duas vagas de acesso e, provavelmente, ao título.
O Elenco
Time Base: Roberto, Bruno Leite, Ciro, Naílton e Da Costa; Márcio, Fred, Júnior e Têti; Léo Itaperuna e Alexsandro
Goleiros: Roberto, Luís Cetin e Ricardo.
Laterais: Bruno Leite, Tardelli, Bruno Matos, Da Costa e Gérson
Zagueiros: Ciro, Naílton, Luís Antônio, Henrique e Weldes
Volantes: Márcio, Fred, Júnior, Maurício, Claudionor e Luís Felipe
Meias: Têti, Rubens, Diguinho, Paulinho, Adriano e Jackson Garcia
Atacantes: Alexsandro, Hamilton Junior, Léo Itaperuna, Saymon e Rodrigo Carioca
5 de Abril de 2008. Um ano e três meses atrás, o América era rebaixado para a Série B do Estadual com a combinação de resultados que deu ao Mesquita a chance de permanecer na Série A em 2009. Na última rodada o América foi até Nova Friburgo, e em uma partida marcada pelas polêmicas com a arbitragem, derrotou a equipe da casa por 2x0. Ao mesmo tempo, no Louzadão, o Mesquita vencia o Duque de Caxias por 4x2, em uma partida dramática. Com a queda, saíram o presidente Reginaldo Mathias, o técnico Gaúcho e todos os atletas do elenco, inclusive os oriundos das categorias de base e considerados jóias no grupo rebaixado.
Mais de um ano depois, o panorama parece ter mudado bastante. Romário, confesso torcedor rubro, e Celso Barros, presidente da Unimed, assumiram um grande desafio: o de colocar o América de novo entre os grandes do futebol brasileiro. Para montar a estrutura do novo departamento de futebol, viabilizaram a vinda de modernos equipamentos e promovem a modernização do Centro de Treinamento do clube, na Rodovia Rio-Petrópolis, um importante passo para a formação de jovens talentos no clube, coisa que não acontece há bastante tempo.
O novo diretor de futebol é Ademar Braga, que trabalhou por muitos anos no Corinthians. Ademar, para quem não lembra, chegou a ser treinador do clube por um bom tempo após a demissão de Antônio Lopes, em 2006. Como técnico, foi contratado Clóvis de Oliveira, que já havia trabalhado no clube em 2008 na comissão técnica de Carlos Roberto, e que tem grande experiência com equipes no exterior.
Clóvis montou um grupo jovem, rápido e pontuado por alguns atletas de grande qualidade técnica, dois deles vindos da Série A do Campeonato Brasileiro.
As três principais contratações possibilitadas pela nova patrocinadora foram a do goleiro Roberto, titular do Vasco em muitas ocasiões nas últimas temporadas, o volante Júnior, ex Vasco e Estrela da Amadora e que estava no Barueri e o artilheiro Alexsandro, que veio do Santo André e teve uma passagem decepcionante pelo Botafogo no ano passado, muito aquém do que costumava demonstrar nos tempos de Resende.
Outras contratações de destaque foram Luís Cetin e Léo Itaperuna, emprestados pelo Fluminense, Henrique e Diguinho, pelo Flamengo e o angolano Jackson Garcia, com passagens pela seleção do país e pelo Penafiel, de Portugal.
Dentre as equipes da Série B do Estadual, além de a mais tradicional, a do América é a que dispõe de maior qualidade técnica, peças de reposição e atletas experientes. É a grande favorita a uma das duas vagas de acesso e, provavelmente, ao título.
O Elenco
Time Base: Roberto, Bruno Leite, Ciro, Naílton e Da Costa; Márcio, Fred, Júnior e Têti; Léo Itaperuna e Alexsandro
Goleiros: Roberto, Luís Cetin e Ricardo.
Laterais: Bruno Leite, Tardelli, Bruno Matos, Da Costa e Gérson
Zagueiros: Ciro, Naílton, Luís Antônio, Henrique e Weldes
Volantes: Márcio, Fred, Júnior, Maurício, Claudionor e Luís Felipe
Meias: Têti, Rubens, Diguinho, Paulinho, Adriano e Jackson Garcia
Atacantes: Alexsandro, Hamilton Junior, Léo Itaperuna, Saymon e Rodrigo Carioca
sábado, 4 de julho de 2009
Lucas Alvares Pelo Buraco da Fechadura
Espia pelas frestas das portas. As de baixo. As dos lados. Expia atrás das portas seus pecados, esfria a tentação de conhecer. Quer saber? Avisa com um grito: "Meu peito aflito só quer ver!". Quer me ver, vou ver você. Afinal, posso espiar? Quero ser mosca na sopa, mosquito na cama, mariposa na parede, abelha na lata. Se é pra assim saber, batata! Se estou aonde não posso ver, nada há o que não ter. Quero ver bem mais além. Veja bem, ouve meu pranto. Quebra o prato e o copo, desencanto. No frigir dos ovos, és o quebrar das louças. És motivo para cruzar o Rebouças, ir pra longe de minha porta. Mas isto não comporta, escute bem. Nada além do que foi feito é um porém. O porém é o que já fiz, em dois anos tão feliz te encontrei. Abre a porta, e me diz: "Posso eu ser mais feliz?". Quero ter resposta decorada para afiançar a esperança. Nesta noite, de cabeça quente e molhada, só espero um novo estrado. Quero uma nova cama, uma nova grama, uma nova porta. Ter contigo um outro lar. Por aqui, as portas se fecharam. Estou trancado em quatro metros, esquecido no caixote, tão perdido em solidão. Eu quero uma porta nova. Com tapete na porta, guirlanda na porta e chaveiro do Vasco. Esfria a minha dor, espia! Expia a minha dor!
quinta-feira, 2 de julho de 2009
Pede por favor...
Quero sorver cada gota de suor que minha testa escorrer. Quero desta gota fazer lágrima, de riso ou de dor. Lágrima de torpor, de humor ou de amor. Lágrima que entorpece de prazer em uma gargalhada presa no peito ou na boca do estômago, destas de fazer doer a barriga. Quero sentir cada unha crescer por semana mais do que na semana passada. Unhas que crescem mais rápido mostram melhor assimilação dos nutrientes. Quero distância das lêndeas, da caspa e dos piolhos. Pensando bem, prefiro raspar a cabeça. E nunca mais usar barba que, pressionada contra o travesseiro, provoca a desagradável sensação de ter um rosto de mentira. Quero beber quatro garrafinhas de água sem querer ir ao banheiro, quero beber cerveja sem sentir o refluxo bater, quero comer pizza sem soluçar após o último pedaço. Quero mudar pra bem longe, virar o fio, trocar de nome, achar outro eu. Quero beber conhaque com limão e três pedras de gelo furadas no meio. Vivo sem medo do outro, pois outro outrossim faria de mim um novo mentir. Nada há de mais falso do que fingir ver a verdade. A minha verdade é ser quem quero ser, sem medo de ter que falar de um jeito que só eu sei. Quero sorver minha alma. Quero viver minha vida. Até o canudo encostar no fundo da lata e fazer um estranho som. Até a última gota. Até a última partícula de glicose.
terça-feira, 23 de junho de 2009
Vinte e Dois, Número de Doido
Desde cedo, fiz esforço pra me ver aos quarenta, aos sessenta e aos oitenta. Depois dos quinze, passei a me imaginar aos vinte. Sempre números redondos, sempre dezenas. Hoje, me imaginei aos vinte e dois. Poucas horas antes deles, refleti sobre as provações às quais o vinte e um me submeteu. Provações de duas perdas importantes, de algumas derrotas acachapantes e... de dezenas de palavras de carinho daqueles que acreditam em mim e admiram o meu trabalho e meu jeito de ser. Foi a honra de saber quem é o Lucas para os que o cercam que marcou meus vinte e um. Muito obrigado a todos que constroem esta grande farsa de mim mesmo chamada Lucas Alvares.
domingo, 21 de junho de 2009
Classificados
O mal quer dominar o mundo. Moças virgens são assassinadas como amuletos ao diabo. Uma virgem procura o amor. Um assassino é protegido por Deus. A vida fica complicada para quem rejeita o bem. O inferno vive momentos decisivos por um novo chefe. O céu contra-ataca o nascimento do segundo diabo. Lúcifer não aceita perder para um oponente gêmeo.
Link pra compra do livro de Jorge Silva, com pagamento em boleto bancário ou através de cartão de crédito:
http://clubedeautores.com.br/book/1488--O_Escultor_e_a_Virgem -
ou no www.clubedeautores.com.br
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sexta-feira, 19 de junho de 2009
Previsão Para o Término das Obras
Hei de lembrar para todo o sempre da ampulheta de areia verde de meu avô. Dos grãozinhos verdinhos, areia sem cor de areia, areia sem som de areia. O bater da areia em minhas canelas causa minúsculas feridas que, antes de serem abertas, incomodam e causam arrepio. São as batidas do tempo que passa na porta da vida que é escassa, o grito solene da finitude com seu cetro arrebatador. Proteja os olhos de tulipa com as mãos, preste continência ao vôo das areias. O tempo vôa! Espera ele trazer mais duas ou três respostas, só as verdades que bastam. É ele quem vai dizer se o certo ou errado gastam mais ou menos capilés na carteira de interesses que convive com nossas artérias femurais. Carótidas certezas! Pulsa o sangue nas artérias, sob imensa pressão. Pulsa o sangue nas batidas, ouve o peito, coração! E vê o tempo passar pelos grãos verdes da redoma de vidro. O tempo dos vaivéns sanguíneos que se repetem bilhões de vezes sem cessar. Até que um dia param. E toda a areia cai. É aí que o cetro impera a mais divina das certezas: a que o término das obras só se dá sem que o cronograma esteja terminado. Peço ao chefe um prazo maior.
segunda-feira, 15 de junho de 2009
Anchova
Abrakadabra, solidão. O só é vassalo de seu prazer masoquista. É só o segredo das noites mágicas de olhar perdido em uma janela molhada. Ela está úmida, posso ver minha palma da mão e meus cinco dedos. Bate o vento, e logo a palma some. E cinco pontos depois. É a finitude de todos os gestos e de todos os gostos, por mais imperiosas que sejam as vontades de fazer dos pequenos momentos uma eternidade. Alakazam, tristeza. Por entre a fresta de outra janela, o frescor das noites de inverno. Sinto-me um pouco morto a cada noite. Cada tremor é uma pequena dose de cicuta, como se estivesse me tornando uma pedrinha de gelo aos poucos. Gelo em um copo de Absinto. O frescor desce seco pela garganta e faz arder o intestino. Esta noite, só o líqüido azul é meu companheiro. Shazam, saudade!
quinta-feira, 11 de junho de 2009
Você nunca parou a Duvivier às cinco?
Uma das sensações que, até há pouco, afirmaria com certeza nunca ter sentido é torcer por personagem de filme. E, menos ainda, para que mocinho-e-mocinha saiam de mãos dadas pela estrada depois de 120 minutos. Quebrado mais um tabu. "Apenas o Fim..." traz um roteiro envolvente, que prende a atenção do espectador e o faz torcer pelo beijo final de Érika Mader e do carismático Gregório Duvivier, o dono da bola. E é romântico sem ser piegas, pois aborda o romance entre jovens mesclando, em uma curiosa troca de sabores, o realismo e o romantismo. Afora o roteiro e as atuações corretas, não há muito o que falar. Os enquadramentos e recursos técnicos são simples, típicos de uma produção universitária como o filme é. Enfim, vale a pena conferir na estréia nacional, amanhã nos cinemas. O jovem cineasta Matheus Souza, mais novo que eu, mostra muita sensibilidade e um grande futuro. Assistam, eu gostei e torci.
domingo, 7 de junho de 2009
Sem Sal, Sem Sal...
Traz na voz um som profundo
O ébrio brado, insípido colosso
O trôpego fervor do amanhecer
É impávida ameaça ao entardecer
Espia atrás da porta, olha à sua volta
Espreita as vozes e vistas
Percorra as trilhas e pistas
Se esforce pra encontrar um bom caminho
Seja dois-um ou um-sozinho
Dê à vida um bom sorriso
Traga a ela um aviso:
Nada me impediu de acreditar
Pois dos ébrios brados tristes
Tão sozinhos, tão aflitos
De certezas, há infinito
De pontos finais, há uns poréns
Viva em espera às reticências
Tenha com o fim paciência
Veja nele um porvir
Pois nada há que termine
E, finalmente, não desanime;
Siga bem firme este caminho:
Aperte as mãos que te enlaçam
E baile com elas no eterno
O ébrio brado, insípido colosso
O trôpego fervor do amanhecer
É impávida ameaça ao entardecer
Espia atrás da porta, olha à sua volta
Espreita as vozes e vistas
Percorra as trilhas e pistas
Se esforce pra encontrar um bom caminho
Seja dois-um ou um-sozinho
Dê à vida um bom sorriso
Traga a ela um aviso:
Nada me impediu de acreditar
Pois dos ébrios brados tristes
Tão sozinhos, tão aflitos
De certezas, há infinito
De pontos finais, há uns poréns
Viva em espera às reticências
Tenha com o fim paciência
Veja nele um porvir
Pois nada há que termine
E, finalmente, não desanime;
Siga bem firme este caminho:
Aperte as mãos que te enlaçam
E baile com elas no eterno
segunda-feira, 25 de maio de 2009
Trânsito Caótico
Lembro-me do Zé, amigo dos tempos de colégio, que sempre finalizava suas frases com a sentença "É, Lucas... é o caos!". O Zé, músico do mais alto gabarito, aluno da Villa-Lobos, conseguia formular reflexões e articular os grandes temas com os grandes autores, tudo com muita organização e perspicácia. Rearrumar as informações absorvidas por um cotidiano tão acachapante é a maior missão que uma esponja-de-conhecimento como eu pode se propor a ter. Em dados momentos, tanta absorção faz com que o computador entre em pane, e... pife! É aí que nos falta inspiração, e as tarefas mais corriqueiras são realizadas sob a luz de um desnudo improviso. Pois então nós gaguejamos, falhamos na escolha léxica, perdemos o sentido das frases, aplicamos a concordância incorretamente e tornamos as nossas propostas bem mais descabidas. A excelência? Foi pras cucuias! Não há como sobreviver nos andares de cima por todo o tempo. Há de se ter tempo para dormir, saborear as guloseimas engordantes e até mesmo coçar o saco. Sem o sagrado intervalo para o ócio criativo - e para o ócio inútil também - não há como manter o raciocínio no padrão desejado. Nos últimos dias, e vocês perceberam isso, tenho passado por uma enorme crise de criatividade. Meu texto não flui. As coisas são feitas no tapa, e todo tapa dói. Escrever sem vontade dá uma enorme dor-de-cabeça, e a sensação de ter feito cooper por todo o calçadão da Avenida Atlântica. Cada dez linhas são dez quilômetros percorridos, tá bom pra vocês? O grande sentido de se passar por uma entressafra criativa destas é reaprender a ordenar os compromissos e os conteúdos absorvidos. Só assim, arrumando mecanicamente os livros na estante, poderemos encontrar uns bons minutos para descansar ou assistirmos despreocupados à novela das sete.
sábado, 9 de maio de 2009
Glacê
Vai na ponta do pé, avisa aos arenques que tu és feliz. Ouça o silêncio que sucede o quebrar das águas, o respingar dos corpos escamados que delas saltam para o habitat, o som estranho da fauna marinha. Entra no banho salgado e faz um agrado ao mar que te rodeia, faz-te ilha de raio curto, ponto primata na imensidão. És, muitas das vezes, a única viva alma perdida no infindo paraíso das incertezas e dos devaneios. Na ilha de mar salgado, és o porto seguro de minha humanidade, a porta aberta de uma voz sã e de duas mãos carinhosas. Mergulha um pouco, e sente gelar as costas e os cabelos. Refresca todos os poros e células, fazei respirar debaixo d'água cada centímetro aliviado de um corpo castigado por tanto se torturar. Não use o autoflagelo. Mergulhe e vá além, sirva de ilha em outros pontos do mar do mundo. Mareia, maruja, e espanta todas as ondas maiores do que as caudalosas. Sirva de mar calmo em meio à tormenta. Crie asas, plane sobre tudo, veja a pequenez de todos os outros que lá de cima são menores do que ti. Observe as copas das árvores, os telhados cor-de-telha, veja o quão as coisas são o que parecem ser. E muitas vezes o são. Sinta a brisa que só o vôo desacompanhado pode trazer. Vá até o infinito, navega pelos ares em busca do profundo que há quando tudo passa tão rápido quanto o vento vem. Voa mais rápido do que as nuvens que correm antes do temporal, deixe-as bem brancas e de frágil consistência. Não quero água pelos joelhos. Me salva do afogamento, me faz sorver meus próprios medos que, vistos lá de cima, são menores quanto todos os outros. Me arrebata o coração com o susto de notar que os amores vôam tal qual o tempo em que vivem, tempo em que o início se divide em mil partes, o meio é o fim e o fim... este está fora de nossos domínios. Faz de cada pedaço do início um recomeço. Reparte cada momento em um porta-retrato, parta comigo para qualquer lugar, viva comigo em qualquer outra parte, seja o encarte ou a primeira página o nosso destino. Corre pelas areias comigo, sente cada grão bater no rosto e arranhar levemente a pele delicada de quem precisa tomar um sol. Seja a sorte de meu destino em cada tempestade. Ria comigo dos camaleões, das aranhas e dos escorpiões. Beba o néctar do mais puro veneno. Seja a minha amiga de todos os risos e dos outros avisos, crítica mordaz dos erros meus e voz doce a palpitar sobre como fazer para consertá-los. Seja acendedor para meu fogo, veja esperta a fogueira que arde quando nada mais há do que a certeza de que a morte é sem porte para apagar esta chama. Seja minha ilha, minhas asas, minha brasa, meu oásis. Sim, seja água em meu deserto. Me faz viver pra sempre a mais doce fantasia de saber que, afinal, amar demais não tem porém. E, de todos elementos, é no mais simples que encontrei meu equilíbrio: no amor, disponível a todos que conseguem encontrar em mais alguém o que sempre quiseram para si próprios.
sexta-feira, 1 de maio de 2009
A Cena Muda
Não pertence a este tempo o ardor das cenas mudas. Outrora, os grandes romances e desforras eram pontuados pelo sepulcral silêncio das bocas que se mexiam sem nada falar. Naquelas paragens, as vozes caladas pela primitiva tecnologia de registro cinematográfico eram simuladas pelas mentes de milhões e repercutidas por quem imaginava como seria o cinema falado. E o cinema falado foi o culpado da transformação. Tornamos som só aquilo o que ouvimos, desconsiderando as sonoridades que só as almas solenes conseguem captar. Compramos discos, e cada vez mais discos, de rotações e long play, exigimos que o som se integrasse em definitivo à imagem cinematográfica com a destituição do sistema Vitaphone e afirmamos que só é áudio o que toca em algum lugar. E as trilhas sonoras de nossas vidas, pontuadas por momentos de maior e menor intensidade - como a própria vida - e que coexistem em nossas memórias? Onde colocar as notas perdulárias dos toques no piano? E o pianista de cinema mudo que há em todos nós?A chegada do som ao imaginário coletivo trouxe o afastamento pelo aperto das pressões cotidianas do instante de mais puro lirismo, que é a contemplação dos gestuais virtuosos e das expressões de cadafalso, típicas de quando a cena era muda. As trilhas sonoras ao piano, as dores e festejos salpicados pela ausência de som e a severidade que só o silêncio traz aos prazeres hedonísticos são peças de museu. Trazer o som à imagem era como abrir a porta do microondas. Pegai-vos o prato pronto. Esquece-se até do principal som que sucede qualquer ato de prazer: o som-nenhum. Nos desapegamos dos momentos em que a singeleza não pede palavras, apenas pensamentos. Estes pensamentos, quando feitos com sensibilidade, trazem som a qualquer cena sem que precisemos escravizar os ouvidos.
terça-feira, 28 de abril de 2009
Mais Do Que Mil Imagens
Só quem vive é a palavra. Incerta, professa a dor e a glória de quem fecha portas para abrir outras. Aperta o peito a dor-saudade, invade a alma o medo aberto, esperta morte espreita ao teto. Há momentos em que o mal nos vê de cima. Espia a voz, nó na garganta, espanta a morte, esfria o pranto, Esparta à dor, espada-flor, espeta amor neste torpor! Nada há de mais vivo do que a palavra. Cada voz e cada letra são dores impressas no papel e na tela, testemunhas de vozes e estridos perdidos das almas afins. Sufoca a dor, dom da palavra! E força mais um dia bom...
sexta-feira, 24 de abril de 2009
Sobre A Libertação
O português que por aqui aportou imaginava como mulher ideal a mourisca beleza das árabes, que por tantos anos dominaram as terras lusitanas e, por outros mais, travaram inúmeras batalhas contra a coroa portuguesa. Talvez venha daí a predileção brasileira pelas negras e morenas. As relações extra-conjugais subjugavam as normas matrimoniais da sagrada família de Lisboa quando esta se transpôs às terras tropicais do Rio de Janeiro, Salvador ou das Gerais. Deve ter sido o calor. O ardor das peles suadas e tostadas trouxe fervor pela alma feminina como o europeu jamais vivenciara. E o português descobriu que gostava de mulher. Por aqui, elas sempre tiveram papel muito mais importante do que em outras colônias. Levaram famílias no braço quando seus maridos, mortos de guerras ou de sonhos, não voltaram para casa. Foram prostitutas, militares travestidas de homens, imperatrizes, baronesas, amazias, cantoras, atrizes de rebolado, rainhas, princesas, infantas, herdeiras da fé e da dor de suas mães, que peregrinavam de véus negros pelas missas de domingo. As brasileiras, desde as origens, exibiram a predestinação para a ruptura. Se não lhes eram dadas as letras, tomavam a palavra e discursavam com o pouco que sabiam. Se as poucas letras não lhes bastavam, se tornaram protagonistas da luta pela universalização do acesso à alfabetização, ao entrarem em sala de aula como as nossas... professoras. Se lhes faltavam outras línguas, conviviam nas pensões e cortiços com as francesas fugidas de guerras e revoluções que aqui ganhavam a vida com diversões baratas como o canto, a dança e o sexo. Dividiam os varais também com as suas mães e avós portuguesas de tamancas, que em nada entendiam do apreço que nós, brasileiros, sempre tivemos pelo sexo oposto. Ah, as mulheres! Intrépidas e caudalosas, sempre curiosas, a sorrir por aí das conversas alheias. E tapam suas bocas com mãos, sorrindo com cuidado e atenção. Libertai-vos das amarras dos que jamais entenderam o seu papel de desnormatizar as normas. Afinal, regras para mulheres caíram muitas e outras cairão. Apenas o sorriso faceiro e dissimulado de todas elas permancerá impassível às mudanças trazidas pela pós-modernidade.
segunda-feira, 20 de abril de 2009
O Susto Assusto
Pérfidas rotinas são as que reservam uma boa dose de parati em pleno café-da-manhã. A embriaguez matinal das trágicas lembranças faz da sebosa missão de aguardar um momento melhor uma espera interminável. É nestes aguardos que descobrimos o quão são importantes as boas companhias nos pontos de ônibus, filas do banco ou do cinema. O exercício perspicaz e lúcido da paciência traz um importante método de observação de nosso próprio cotidiano, como forma de construir alternativas mais eficazes e elaboradas, tornando assim cada espera um ato de proveitoso ócio criativo. É aí que me assusto com a necessidade de, o tempo todo, buscar mil possibilidades simultaneamente. A cada dia, nossas mentes funcionam como processadores. E, os informáticos sabem, processadores dobram de capacidade a cada seis meses. Assim como a tecnologia do processamento de dados atingiu o ápice da velocidade da transferência de informações, nossos corpos, mentes e almas já não mais podem suportar o peso hercúleo das obrigações pós-modernas. A embriaguez está aí. O torpor causado pela incessante demanda de compromissos colabora para a desconstrução do pensamento cotidiano, uma vez que o cotidiano inexiste com a necessidade de se agir diferente a cada segundo. Não há mais rotina. Quando pensamos de forma egocêntrica no ato alpinista de ser pós-moderno, estamos assinando o nosso atestado de liqüidez e efemeridade. Que não sejamos sempre seres embriagados. Um dia, a necessidade de viver em consonância com nossos princípios fará desnecessário o uso de máscaras e outros falseamentos. Neste dia, meus amigos, seremos devemos ser: nós por todo o tempo.
domingo, 19 de abril de 2009
Pecado Rasgado
Os atos pensados são sempre os mais rasgados. Teatrais, chorosos, exagerados. Desde pequenos, no chão nos debatemos em pedido ao desejado. Mesmo serenos, fazemos do sério um pedido. Pedimos em nosso blasè logo uma recompensa, e os outros que se dêem por satisfeitos com o nosso bom comportamento. Ao fim das contas, nos debatemos e esperneamos por todo o resto. Afinal, rasgadas e chorosas são todas as coisas que queremos, sofridos e perdidos são todos os bens que encontramos. Nada nos resta além de espernear pela própria sorte. Encontrem-a nas próximas lágrimas. Quem sabe não tropecem em uma pepita de ouro por aí.
sábado, 11 de abril de 2009
Negativo!
Todas as vezes em que a vida me pôs na berlinda, eu não a contestei. Sabatinado pelo desconhecido, trouxe a todas as respostas um bom porém. Obviamente, até outro dia, não havia tomado qualquer decisão, apenas possibilidades. O ato de tomar um caminho na estrada quando se faz necessário, com todas as suas desconfianças, é um ato corajoso. Através dele, para o bem ou para o mal, lançamos pedras fundamentais no chão gramado de nossas vidas, e fotografamos - dia após dia - o resultado das obras realizadas. Jamais seguimos o cronograma. Na grande empreitada do contrato, observamo-nos com pessoas, coisas e lugares que jamais esperamos. É ali, nas fronteiras do inusitado, que nos apresentamos ao ponto favorito de todos nós: as poucas certezas que temos, às quais nos apegamos como a última gota do cantil. Enfrentamos tantos dragões e tantos males o quanto suportarmos, nos aliamos a moinhos de vento e desabafamos com muros pichados por vândalos da Praça da Sé. É da vida seguir de pé. É sofrida a vida de quem só tem a última gota do copo de plástico azul, que se arrasta por sua superfície lisa e sintética com vagareza até atingir nossos lábios sedentos por um pouco de frescor. Refresca minh'alma, Isabela. Nos dias em que o asfalto derrete sob nossos pés, ao calor dos ovos fritos, nada há de mais certo do que o destino incerto. Já não sabemos mais para onde iremos. Nos foi negado o santo direito das certezas, das vitórias e alegrias e das dores e fraquezas. Somos todos blasé. Sem euforia, sem desespero. Somos médios por inteiro. O mundo é dos medíocres. Só não me deixem desgarrar de minha gota d'água. É ela, no fundo do copo, que renova o exercício do dom da vida a cada amanhecer. É ela, rainha dos clichês, que afaga minhas incertezas com uns bons poréns, tais quais os meus, e que me prometeu jamais dizer adeus.
quinta-feira, 9 de abril de 2009
E Por Falar Em Amor: Onde Anda Você, Lucas Alvares?
Nunca vou me esquecer de um professor dos tempos de colégio que me trouxe uma enorme lição de vida: nunca se lê o mesmo livro da mesma forma. Quando lemos a mesma obra em diferentes períodos de nossa existência, descobrimos novos enredos e significados. Através deste exercício de interminável interpretação, observamos o quanto somos analfabetos de leitura. E não falo da leitura pura e simples, do beabá das letras da escola. Falo de ler os significados, compreendê-los e degustar cada resquício de bom passado que nos restar nos cantos dos pratos. Foi assim, relendo o que já li, que formei minha personalidade e a minha forma de enxergar o mundo em que nasci. 'Mas afinal de contas, não há nada tão presente nos seres vivos do que o tal do amor, que sempre transcende as barreiras do normal e do realismo...', como eu escrevi aos quinze anos. Hoje, aos vinte e um, decidi reler tudo o que eu mesmo coloquei aqui na web nos últimos sete. Redescobri uma infinidade de percepções dos quatorze, dos quinze, dos dezesseis, de sete Lucas, quinhentos sonhos, setecentas decepções e mil e oitocentos recomeços. Na realidade, me deparei com o que nunca fui, mas sempre quis ser: um escritor bem-sucedido que, aprisionado no endereço de um blog, encontra leitores carinhosos e participativos como os que tenho. A grande verdade é que nestes anos todos nada mais fiz do que refletir e amadurecer. Foi assim, seguindo em linha reta na estrada do sensível, que encontrei o pouco que penso que sou. Ali, naquelas milhares de linhas, imprimi meu principal anseio. Jamais deixar de amar. E amei muitas, e mais outras, amei meus avós, amei todos os que vieram por aqui e já passaram. Nas muitas noites de copos d'água, Sinatras e fotos bonitas, revelei pensamentos inspiradores aos que me liam com atenção. É esta, meus amigos, minha maior herança. Por um segundo, decidi me despedir dos velhos Lucas. Estes meus companheiros de jornada estão aqui, aposentados em meu guarda-roupa, prontos para serem histórias para contar. Um dia os desengavetarei. Por enqüanto, nos vinte e um, afirmo que sei bem o que amo. Amo todas as coisas que me cercam, ainda que me tragam preocupações e desgostos. Minha vida é uma úlcera na minha alma. Haverei de cultivá-la, com todos os seus sofreres. E, tal qual o personagem da mitologia grega, sempre haverá a noite para cicatrizar minhas feridas. É nela que faço o balanço de tudo o que já fiz, e constato que certamente já tenho bons recortes pra guardar.
sexta-feira, 3 de abril de 2009
Epitáfio
Aqui jaz pobre alma
A quem a dor não acalma
A quem a flor não encanta
A quem o amor não aventa
Aventa a sorte que espera
E espera a morte que herda
A fina flor da quimera
Que agüenta a vida austera
Aqui jaz azar profundo
Que vê tudo de errado no Mundo
Que vê tudo perdido no fundo
Que vê algo ferido de morte
Traga à morte boa sorte
A sete palmos do findo
Pois findo é algo profundo
Pois nele foi-se esse mundo
A quem a dor não acalma
A quem a flor não encanta
A quem o amor não aventa
Aventa a sorte que espera
E espera a morte que herda
A fina flor da quimera
Que agüenta a vida austera
Aqui jaz azar profundo
Que vê tudo de errado no Mundo
Que vê tudo perdido no fundo
Que vê algo ferido de morte
Traga à morte boa sorte
A sete palmos do findo
Pois findo é algo profundo
Pois nele foi-se esse mundo
quinta-feira, 26 de março de 2009
Com A Menor Beca Possível
Pelas ruas do Leblon às oito e quinze, ignorando sinais fechados, entrando nas ruas erradas, pisca-alerta para ultrapassar. Ultrapasso os limites do tempo nos trinta ou quarenta minutos que passei por ali, a espera do caminho certo para estacionar. Ano e pouco atrás, era a areia, a água salgada e os fogos lá em cima. Barulhentos, amedrontadores. Ela toda hora se assustava. Sobre a velha canga, juras de que aquele seria apenas o primeiro. E que só nós ultrapassaríamos o tempo. Por centenas de noites, a mesma despedida, pontual às oito e meia, mesma hora em que agora perpassava o triângulo Gávea-Lagoa-Leblon, ainda atrás de uma vaga. Lembro-me de que os sapatos estão um pouco empoeirados, e que talvez alguém repare. A camisa, sportish, é verde quadriculada. Cafonérrima, diria Clodovil. No som do carro, algo de Sinatra e de Nat, a trilha desde os dez de idade das noites pela Lagoa e pelos pontos bonitos da Zona Sul, onde sempre viveu e nunca de fato conheceu. Estas noites não são dele. Hoje, a noite é de quem a desdenhou. De quem a tratou como fato consumado, compromisso cumprido e contrato findo. A quem ria docemente de tudo, com a menor beca do Mundo, eram dados todos os vivas da festividade. E por onde passava, só ouvia os parabéns de quem aplaudia o companheirismo de quem nunca esteve só. É ela, que aperta a mão dele com apreensão e incerteza, a dona da mesa. Que tira a beca na frente do povo, que segue rindo para todos os vértices daquele salão. É ela a menorzinha, cheia de medos e preocupações menores. Afinal, a maior preocupação não nasceu aqui. Construir algo que siga incólume às esquinas do tempo foi decisão tomada ali na praia, que de tão barulhenta ninguém pôde ouvir: tratar para sempre a mesma pessoa por "meu amor".
sexta-feira, 20 de março de 2009
Barriga Cheia
Abate-me a pressa
Apressa pro abatedouro
E toca rápido, agora!
Entra na Rua Corrida do Ouro!
Somos tais quais duzentos anos atrás
De picaretas nas mãos, de bolsas nos bolsos
Atrás dos engodos nos classificados dos jornais
Atrás da caneta vermelha para circular
Afinal, a sorte e o azar também têm de circular
Nas mansões, nos barracos e em todo lugar
Pra quem tem pra vender e quem tem que comprar
Quem espera a ajuda ou vai procurar
Somos todos lebres no mesmo balaio de gatos
Loucos para corrermos atrás dos "baratos"
A procura do prazer fácil e constante
Oh! Corrida desumana e imbecilizante...
Apressa pro abatedouro
E toca rápido, agora!
Entra na Rua Corrida do Ouro!
Somos tais quais duzentos anos atrás
De picaretas nas mãos, de bolsas nos bolsos
Atrás dos engodos nos classificados dos jornais
Atrás da caneta vermelha para circular
Afinal, a sorte e o azar também têm de circular
Nas mansões, nos barracos e em todo lugar
Pra quem tem pra vender e quem tem que comprar
Quem espera a ajuda ou vai procurar
Somos todos lebres no mesmo balaio de gatos
Loucos para corrermos atrás dos "baratos"
A procura do prazer fácil e constante
Oh! Corrida desumana e imbecilizante...
sexta-feira, 13 de março de 2009
Uma Varredura na História
"A Gramática Histórica", uma coleção em quatro volumes que versa sobre os diversos campos de estudo da língua portuguesa é uma elegante edição de duzentas páginas em cada tomo, rica ilustração - a começar pela foto sorridente do autor na primeira página - e uma bela capa de couro pintado de vermelho. Trata-se de uma coleção dos velhos tempos, que amarela as páginas sem perder a profundidade das tintas, tampouco enruga o couro de sua capa se a ao menos uma estante estiver reservada. Elaborada por seu autor nos tempos em que viveu no exílio, trata-se de um dos principais compêndios sobre a língua portuguesa elaborados no século passado. O autor, Jânio "da Silva" Quadros, um matogrossense nascido no dia 25 de janeiro de 1917 em Campo Grande - hoje Mato Grosso do Sul - dedicou-se com meticuloso interesse à sua elaboração, o que o consagrou como acadêmico das letras que era e como portador de imenso conhecimento sobre as origens culturais de nossa identidade enquanto nação. Tenho a coleção toda de Jânio em algum armário aqui de casa. Poucas vezes a utilizei, e confesso não tê-la aberto nos últimos anos, muito embora o pleno conhecimento gramático seja vital para a boa atividade jornalística. No entanto, me recordo das impressões de meus avós sobre o maior fenômeno eleitoral da história do Brasil, homem que saiu da insignificância partidária para o mais alto posto do país. Jânio espetacularizou pela primeira vez os comícios eleitorais, com o show de horrores que promovia ao receber injeções de calmantes em público, arrancar os poucos cabelos que tinha e promover a participação ativa de seus eleitores no palanque, como testemunhos de fé dos que vemos nas igrejas até os dias de hoje. Votar em Jânio, em suma, era basicamente isto: um testemunho de fé. Poucas vezes se utilizou de forma tão flagrante o personalismo como arma nas urnas, vez alguma se anulou a participação partidária com tamanha força nem se centralizou a administração Federal de modo tão profundo. Talvez por isto os nove meses de governo tenham estabelecido o recorde negativo como o presidente que, eleito, menos tempo permaneceu no poder. Bêbado de amor pelo poder e louco de desejo pela aclamação popular, Jânio tropeçou em sua gramática percepção do Brasil. Ao analisar questões de capilares dificuldades com a simplicidade de quem classifica tal conjugação verbal como correta ou incorreta, o ex-presidente recaiu no erro, recorrente até este século, dos que degustam apenas o glacê do bolo enquanto deixam a massa intocada. Sua volta à cena política, como candidato ao governo paulista em 1982 - derrotado por Franco Montoro, que exerceria um desastroso mandato - e o retorno à prefeitura paulistana com a vitória de 1985 - quando capitalizou os votos conservadores, em contraponto ao eleitorado "esquerdista" de Fernando Henrique Cardoso e Eduardo Suplicy - representou uma página quase inverossímil de nossa história política. O retorno de Jânio é até hoje lembrado como a prova cabal de que jamais se dá como morto quem tão bem quanto ele capta os interesses das massas - ainda que quase nunca atendidas - e exerce o marketing pessoal com tamanha competência. O vídeo acima, datado da campanha ao governo em 1982, mostra um Jânio pouco à vontade na cidade de Rio Claro, no interior de São Paulo. Uma espécie de César Maia de seu tempo, com o eleitorado concentrado na capital - especialmente em bairros populares e populosos como a Vila Maria e a Vila Madalena, futuros redutos malufistas - perdeu ao menos duas eleições para o governo pela dificuldade em atingir as atenções do eleitorado interiorano, pouco afeito a um político que sofria com as acusações de promover bebedeiras há décadas. Gramaticalmente, o polido Jânio Quadros representou um hiato em nossa história presidencial. Porém, ao analisarmos sob a ótica literária, a presença da folclórica figura esquálida, descabelada e trôpega no poder é a maior mostra de nossa falta de maturidade ao escolhermos e resgatarmos nossos líderes. Dezesseis anos depois de morto, Jânio é a memória de uma de nossas maiores derrotas - uma vez que sua queda contribuiu para o Golpe de 64, ao dar subsídios ideológicos aos defensores da ruptura com o sistema democrático, como todos se lembram - e a paixão de suas maiores vitórias, presente mais de vinte anos após seu último pleito em todos os que amaram o trépido e carismático personagem, tão amado quanto odiado por todas as forças: cultas, incultas, e até mesmo as terríveis.
segunda-feira, 9 de março de 2009
Existencialismo
Somos todos abre-portas de um grande cabaré. Somos sempre abrea-alas de um grande bloco a pé. Somos todos porta-sinos em uma grande chaminé. Somos quase sempre o resto, tão sujeito ao defenestro, tão ao encontro do seqüestro, tão restritos ao comum. Sim, seqüestram-nos as almas quando negam-nos o futuro, ainda que o futuro seja os centavos jogados ao vento por quem deu mais sorte e ficou por aí. Não acredite nos restos. Eles são como lobos a espreita de quem se enfeita para ver a vida passar. Só os que passaram bem por algumas noites podem ver os dias em um feliz despertar. Aos outros, só restam os uivos invejosos, sedentos por pontos a mais no jogo da vida. Tais lobos são restos a mais do prato do dia. Tais lobos são frestas a mais das portas abertas. Acreditem: só nos resta o que restar. Por mais que esperemos e tentemos, o futuro está nas mãos dos que nada fazem. Aceitem: o resto ritual está nas letras dos que nada trazem.
domingo, 8 de março de 2009
E Carmen, aonde está?
Por Lucas Alvares
A jornalista Dulce Damasceno de Brito, morta em novembro do ano passado, conviveu com Carmen Miranda em Beverly Hills durante os anos 40 e 50. Em dezenas de entrevistas realizadas no período, ouviu uma Carmen libertária e liberal, polêmica e polemista, ironicamente conservadora - era ao mesmo tempo favorável à libertação da mulher e contrária ao divórcio - e conservante de seu próprio talento através das décadas. As impressões da cantora, disponibilizadas no site http://carmen.miranda.nom.br/ nos mostram uma personalidade de enorme tamanho. Ruy Castro, consagrado biógrafo, fez da vida e da obra de Carmen um Best Seller. Marília Pêra, em mais de uma ocasião, consagrou no teatro, como em uma ode ritualística, a memória da Pequena Notável. Em comum, todos estes têm ou tinham o carinho e a admiração por quem ultrapassa há 80 anos os limites de todos os ídolos que vieram antes dela. “Foi a primeira vez que eu biografei uma mulher. E a Carmen é tão apaixonante, tão carismática, que eu beirei a paixão física”, justificou Ruy durante uma palestra proferida a um pequeno grupo de alunos da Rede Municipal de Ensino na última sexta-feira, dia 6. Uma turma de surdos-mudos, algumas velhas fãs, leitores tradicionais de Ruy, mais interessados nele do que em Carmen e dois ou três repórteres da imprensa universitária. Durante as comemorações do centenário no semi-abandonado “Museu Carmen Miranda”, o panorama não foi muito diferente. Apesar de ótimas iniciativas, como a exibição do restaurado “Alô, Alô, Carnaval!” – único filme de Carmen produzido no Brasil ainda inteiramente conservado - a presença de público esteve muito aquém do esperado, e mesmo a divulgação por parte da imprensa foi restrita à notas de pé de página dos colunistas.
Trata-se, ora bolas, do centenário da maior brasileira de todos os tempos! Não é exagero afirmar que Maria do Carmo Miranda da Cunha, nascida no seio de uma típica família portuguesa em 9 de fevereiro de 1909 quebrou, paradoxalmente às suas origens, diversos tabus relativos ao papel da mulher na sociedade. Manteve tórridos e públicos romances com playboys, atletas, artistas e atores de cinema – todos grupos então marginalizados - cobertos à exaustão pela nascente imprensa brasileira dos anos 30 e, lógico, pela ávida indústria de fofocas da Holywood dos anos 40 e 50, pôs a barriga de fora nos shows e filmes, ficou milionária antes dos quarenta anos, fez um aborto e morreu em decorrência de um vício com o qual nunca conseguiu lidar: os barbitúricos. Como pode uma personagem de tamanha penetração popular ter a sua exaltação diária restrita à idolatria dos grupos de travestis de Copacabana e a alguns idosos saudosos dos tempos de juventude? É preciso redescobrir Carmen para que seu autêntico papel na formação da identidade nacional brasileira seja assim delimitado.
Não é verdade que ela tenha sido a nossa primeira cantora, tampouco a melhor cantora de sua geração. Muito antes de Carmen, as vedetes Pepa Delgado e Aracy Côrtes e a lírica Zaíra de Oliveira gravavam discos com relativa regularidade pela Casa Edison, e eram nomes bastante populares nas ruas cariocas. Se compararmos a capacidade vocal de Carmen à de sua principal rival, a irmã, Aurora Miranda, é nítido que Aurora era muito mais cantora. Se lembrarmos que “A Ditadora Risonha do Samba”, epíteto oferecido pelo radialista César Ladeira, poucas vezes foi escolha para Noel Rosa, Cartola e Ismael Silva, torna-se quase uma heresia classificá-la como sambista. Mas Carmen era muito mais do que isso. Era a dona dos sorrisos de batom vermelho, dos olhos verdes que fuzilavam platéias, dos “erres”
arrastados e do canto pequeno, porém natural, que trouxe por mais de 25 anos de carreira. Sua voz, considerada menor, nada mais era do que o eco das ruas. E se os sambistas sempre lhe torceram o nariz, o mesmo não se pode dizer dos grandes compositores de marchas carnavalescas. Braguinha, Haroldo Lobo, Herivelto Martins e Luiz Peixoto a adoravam, e a ofereceram sucessos como “Touradas em Madri”, entre muitos outros clássicos dos antigos carnavais. E, carnaval naqueles tempos – é bom que se diga – era muito mais de marchas do que de sambas. Os Cordões e Sociedades Carnavalescas ainda eram muito mais populares do que as nascentes Escolas de Samba.
Enquanto discutem-se miudezas como a boa vontade ou não de Noel e Cartola com o que para eles não era samba, se esquece do principal: tanto o samba quanto a marcha carnavalesca são autênticas expressões da cultura popular, com maiores influências do erudito e da cultura européia, mas essencialmente produções populares. E que Carmen, pelo ídolo que representou junto às camadas populares, pelo fato de ter sido a chapeleira que tornou-se rainha aos 20 anos de idade e por representar o Rio Luso-Brasileiro do início do século passado, é o sincretismo do samba em pessoa. De Marco dos Canavezes, cidadezinha próxima a Trás-dos-Montes ao Rio de Janeiro, da pequena chapelaria aos palcos de maior sucesso, da Lapa marginal – onde morou durante a infância – às mansões nos Estados Unidos.
Não há como dissociar Carmen do que há de mais popular e do que há de mais vencedor. Ela simboliza a nossa própria formação enquanto povo que mantém, desde então, numerosa e elogiada produção artística. Por sinal, o perfil multi-talentoso de uma mulher que desenhava o seu próprio figurino, criava as coreografias de suas músicas e mantinha uma criteriosa seleção sobre o que era por ela gravado mostra bem a presença de palco e espírito que só uma verdadeira estrela pode ter. Carmen foi estrela, ainda no Brasil, do disco, do rádio, do cinema e de um meio sempre marginalizado, tanto por aspectos morais quanto por sua questionável qualidade artística: o Teatro de Revista. O jornalista Haroldo Costa, reconhecido pesquisador da formação e desenvolvimento da MPB, defende o “Rebolado”, aonde Carmen teve o seu primeiro contato com os palcos teatrais – que a levariam depois à Brodway: “A tese da marginalização do teatro de revista é muito relativa, porque foi de lá que saíram não só intérpretes, mas compositores do quilate de Luiz Peixoto, Ari Barroso, Lamartine Babo, Custódio Mesquita, para falar apenas de alguns.“. E mais: Carmen Miranda foi decisiva para o fortalecimento do Cassino da Urca, antigo ponto da jogatina mambembe dos anos 20 e que – a beira da falência – foi resgatado com as apresentações da estrela. O sucesso “no Urca” fez de Carmen a mais ilustre moradora do bairro, dona de uma enorme casa que recebia todas as manhãs as visitas de dezenas de curiosas crianças moradoras do bairro, que iam atrás de umafoto ou de um pouco de atenção. Carmen atendia a todas, servia refrigerante e entregava fotos autografadas.
Sobre a Carmen dos Estados Unidos, todos já sabem. Foram 13 filmes, entre 1941 e 1953. Todos de qualidade duvidosa. Não obstante a revolução estética trazida pelo Novo Tecnicolor aliado aos berrantes trajes da “cantriz”, os personagens estereotipados e a produção e divulgação notadamente apressadas pelas metas da “Política da Boa Vizinhança” – em especial durante a 2ª Guerra Mundial – fizeram com que estes filmes fossem classificados por muitos cinéfilos como obras menores. O “Bando da Lua”, que habitualmente acompanhava Carmen nos shows e filmes pelos Estados Unidos, aparecia caracterizado como um grupo de “rumbeiros”, muito distantes da realidade brasileira. Obviamente que a importância de Carmen para a divulgação do Brasil, ainda que de forma estereotipada, é inegável. Porém, os 15 anos passados no estrangeiro serviram para que a atriz e cantora desenvolvesse uma profunda depressão, e a partir dela, um conhecido vício em barbitúricos e outros tipos de fármacos que consumia para dormir, acordar, se acalmar ou se agitar. E, muitas vezes, todos ao mesmo tempo. Sua morte, em 5 de agosto de 1955 – quando havia acabado de se pentear para ir dormir – deu fim prematuro a uma carreira que duraria, com certeza, muitas décadas mais no mais absoluto sucesso. Quando o coração de Carmen falhou pela primeira e única vez, uniu os corações de dois países de dimensões continentais em um pranto de dor e saudade. A letra de “Adeus Batucada”, um de seus maiores sucessos, ficou para sempre atrelada ao fim do ato de quem foi forte e delicada até a morte.
A transformação de Carmen em um dos últimos grandes mitos da modernidade fez com que a mulher brasileira ganhasse novos contornos: o de chefe de família, como Carmen foi por muitos anos, o de senhora de seu próprio destino, o que Carmen foi por alguns anos e o de colocar seu nome na história a ponto de ser para sempre lembrada. Esta obra, Carmen concluiu. A intensidade com que sua memória será reverenciada é que traz a maior dúvida deste centenário. Quando sua irmã –e melhor amiga – Aurora morreu, no final de 2005, apenas 15 pessoas compareceram ao sepultamento. Em um país que há séculos não preserva a sua própria memória, não exaltar na justa medida quem só nos fez sorrir é a prova cabal de que nossos ídolos nos falam e nos são contados apenas nos velhos discos e nos livros empoeirados, ouvidos e lidos por muitos, mas não por todos.
A jornalista Dulce Damasceno de Brito, morta em novembro do ano passado, conviveu com Carmen Miranda em Beverly Hills durante os anos 40 e 50. Em dezenas de entrevistas realizadas no período, ouviu uma Carmen libertária e liberal, polêmica e polemista, ironicamente conservadora - era ao mesmo tempo favorável à libertação da mulher e contrária ao divórcio - e conservante de seu próprio talento através das décadas. As impressões da cantora, disponibilizadas no site http://carmen.miranda.nom.br/ nos mostram uma personalidade de enorme tamanho. Ruy Castro, consagrado biógrafo, fez da vida e da obra de Carmen um Best Seller. Marília Pêra, em mais de uma ocasião, consagrou no teatro, como em uma ode ritualística, a memória da Pequena Notável. Em comum, todos estes têm ou tinham o carinho e a admiração por quem ultrapassa há 80 anos os limites de todos os ídolos que vieram antes dela. “Foi a primeira vez que eu biografei uma mulher. E a Carmen é tão apaixonante, tão carismática, que eu beirei a paixão física”, justificou Ruy durante uma palestra proferida a um pequeno grupo de alunos da Rede Municipal de Ensino na última sexta-feira, dia 6. Uma turma de surdos-mudos, algumas velhas fãs, leitores tradicionais de Ruy, mais interessados nele do que em Carmen e dois ou três repórteres da imprensa universitária. Durante as comemorações do centenário no semi-abandonado “Museu Carmen Miranda”, o panorama não foi muito diferente. Apesar de ótimas iniciativas, como a exibição do restaurado “Alô, Alô, Carnaval!” – único filme de Carmen produzido no Brasil ainda inteiramente conservado - a presença de público esteve muito aquém do esperado, e mesmo a divulgação por parte da imprensa foi restrita à notas de pé de página dos colunistas.
Trata-se, ora bolas, do centenário da maior brasileira de todos os tempos! Não é exagero afirmar que Maria do Carmo Miranda da Cunha, nascida no seio de uma típica família portuguesa em 9 de fevereiro de 1909 quebrou, paradoxalmente às suas origens, diversos tabus relativos ao papel da mulher na sociedade. Manteve tórridos e públicos romances com playboys, atletas, artistas e atores de cinema – todos grupos então marginalizados - cobertos à exaustão pela nascente imprensa brasileira dos anos 30 e, lógico, pela ávida indústria de fofocas da Holywood dos anos 40 e 50, pôs a barriga de fora nos shows e filmes, ficou milionária antes dos quarenta anos, fez um aborto e morreu em decorrência de um vício com o qual nunca conseguiu lidar: os barbitúricos. Como pode uma personagem de tamanha penetração popular ter a sua exaltação diária restrita à idolatria dos grupos de travestis de Copacabana e a alguns idosos saudosos dos tempos de juventude? É preciso redescobrir Carmen para que seu autêntico papel na formação da identidade nacional brasileira seja assim delimitado.
Não é verdade que ela tenha sido a nossa primeira cantora, tampouco a melhor cantora de sua geração. Muito antes de Carmen, as vedetes Pepa Delgado e Aracy Côrtes e a lírica Zaíra de Oliveira gravavam discos com relativa regularidade pela Casa Edison, e eram nomes bastante populares nas ruas cariocas. Se compararmos a capacidade vocal de Carmen à de sua principal rival, a irmã, Aurora Miranda, é nítido que Aurora era muito mais cantora. Se lembrarmos que “A Ditadora Risonha do Samba”, epíteto oferecido pelo radialista César Ladeira, poucas vezes foi escolha para Noel Rosa, Cartola e Ismael Silva, torna-se quase uma heresia classificá-la como sambista. Mas Carmen era muito mais do que isso. Era a dona dos sorrisos de batom vermelho, dos olhos verdes que fuzilavam platéias, dos “erres”
arrastados e do canto pequeno, porém natural, que trouxe por mais de 25 anos de carreira. Sua voz, considerada menor, nada mais era do que o eco das ruas. E se os sambistas sempre lhe torceram o nariz, o mesmo não se pode dizer dos grandes compositores de marchas carnavalescas. Braguinha, Haroldo Lobo, Herivelto Martins e Luiz Peixoto a adoravam, e a ofereceram sucessos como “Touradas em Madri”, entre muitos outros clássicos dos antigos carnavais. E, carnaval naqueles tempos – é bom que se diga – era muito mais de marchas do que de sambas. Os Cordões e Sociedades Carnavalescas ainda eram muito mais populares do que as nascentes Escolas de Samba.
Enquanto discutem-se miudezas como a boa vontade ou não de Noel e Cartola com o que para eles não era samba, se esquece do principal: tanto o samba quanto a marcha carnavalesca são autênticas expressões da cultura popular, com maiores influências do erudito e da cultura européia, mas essencialmente produções populares. E que Carmen, pelo ídolo que representou junto às camadas populares, pelo fato de ter sido a chapeleira que tornou-se rainha aos 20 anos de idade e por representar o Rio Luso-Brasileiro do início do século passado, é o sincretismo do samba em pessoa. De Marco dos Canavezes, cidadezinha próxima a Trás-dos-Montes ao Rio de Janeiro, da pequena chapelaria aos palcos de maior sucesso, da Lapa marginal – onde morou durante a infância – às mansões nos Estados Unidos.
Não há como dissociar Carmen do que há de mais popular e do que há de mais vencedor. Ela simboliza a nossa própria formação enquanto povo que mantém, desde então, numerosa e elogiada produção artística. Por sinal, o perfil multi-talentoso de uma mulher que desenhava o seu próprio figurino, criava as coreografias de suas músicas e mantinha uma criteriosa seleção sobre o que era por ela gravado mostra bem a presença de palco e espírito que só uma verdadeira estrela pode ter. Carmen foi estrela, ainda no Brasil, do disco, do rádio, do cinema e de um meio sempre marginalizado, tanto por aspectos morais quanto por sua questionável qualidade artística: o Teatro de Revista. O jornalista Haroldo Costa, reconhecido pesquisador da formação e desenvolvimento da MPB, defende o “Rebolado”, aonde Carmen teve o seu primeiro contato com os palcos teatrais – que a levariam depois à Brodway: “A tese da marginalização do teatro de revista é muito relativa, porque foi de lá que saíram não só intérpretes, mas compositores do quilate de Luiz Peixoto, Ari Barroso, Lamartine Babo, Custódio Mesquita, para falar apenas de alguns.“. E mais: Carmen Miranda foi decisiva para o fortalecimento do Cassino da Urca, antigo ponto da jogatina mambembe dos anos 20 e que – a beira da falência – foi resgatado com as apresentações da estrela. O sucesso “no Urca” fez de Carmen a mais ilustre moradora do bairro, dona de uma enorme casa que recebia todas as manhãs as visitas de dezenas de curiosas crianças moradoras do bairro, que iam atrás de umafoto ou de um pouco de atenção. Carmen atendia a todas, servia refrigerante e entregava fotos autografadas.
Sobre a Carmen dos Estados Unidos, todos já sabem. Foram 13 filmes, entre 1941 e 1953. Todos de qualidade duvidosa. Não obstante a revolução estética trazida pelo Novo Tecnicolor aliado aos berrantes trajes da “cantriz”, os personagens estereotipados e a produção e divulgação notadamente apressadas pelas metas da “Política da Boa Vizinhança” – em especial durante a 2ª Guerra Mundial – fizeram com que estes filmes fossem classificados por muitos cinéfilos como obras menores. O “Bando da Lua”, que habitualmente acompanhava Carmen nos shows e filmes pelos Estados Unidos, aparecia caracterizado como um grupo de “rumbeiros”, muito distantes da realidade brasileira. Obviamente que a importância de Carmen para a divulgação do Brasil, ainda que de forma estereotipada, é inegável. Porém, os 15 anos passados no estrangeiro serviram para que a atriz e cantora desenvolvesse uma profunda depressão, e a partir dela, um conhecido vício em barbitúricos e outros tipos de fármacos que consumia para dormir, acordar, se acalmar ou se agitar. E, muitas vezes, todos ao mesmo tempo. Sua morte, em 5 de agosto de 1955 – quando havia acabado de se pentear para ir dormir – deu fim prematuro a uma carreira que duraria, com certeza, muitas décadas mais no mais absoluto sucesso. Quando o coração de Carmen falhou pela primeira e única vez, uniu os corações de dois países de dimensões continentais em um pranto de dor e saudade. A letra de “Adeus Batucada”, um de seus maiores sucessos, ficou para sempre atrelada ao fim do ato de quem foi forte e delicada até a morte.
A transformação de Carmen em um dos últimos grandes mitos da modernidade fez com que a mulher brasileira ganhasse novos contornos: o de chefe de família, como Carmen foi por muitos anos, o de senhora de seu próprio destino, o que Carmen foi por alguns anos e o de colocar seu nome na história a ponto de ser para sempre lembrada. Esta obra, Carmen concluiu. A intensidade com que sua memória será reverenciada é que traz a maior dúvida deste centenário. Quando sua irmã –e melhor amiga – Aurora morreu, no final de 2005, apenas 15 pessoas compareceram ao sepultamento. Em um país que há séculos não preserva a sua própria memória, não exaltar na justa medida quem só nos fez sorrir é a prova cabal de que nossos ídolos nos falam e nos são contados apenas nos velhos discos e nos livros empoeirados, ouvidos e lidos por muitos, mas não por todos.
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